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E
Também aqueles Dias
«(…) Começámos a subir para
Santarém quando o sol nascia. Estivemos na feira toda a manhã e parte da tarde.
Não vendemos os bácoros todos. Por isso tivemos de regressar também a pé, e foi
aí que aconteceu aquilo que não tornou mais a acontecer. Por cima de nós
formou-se um anel de nuvens que quase ao sol-pôr enegreceram e começaram a
largar chuva, e então por muito tempo andámos sem que uma gota nos apanhasse,
enquanto à nossa volta, circularmente, uma cortina de água nos fechava o
horizonte. Por fim as nuvens desapareceram. A noite vinha devagar entre as
oliveiras. Os animais faziam aqueles ruídos que parecem uma interminável conversa.
Meu tio, à frente, assobiava devagarinho. Por causa de tudo isto me veio uma
grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que
jurei a mim mesmo não morrer nunca.
De Quando Morri Virado ao Mar
Deixei a lagoa pelo meio da
manhã, quando o sol limpara já todo o céu. Sobre a água, que as rápidas aragens
mal agitavam, não tinham ficado vestígios da neblina cerrada que, no amanhecer,
cobrira toda a superfície. Valera a pena acordar cedo e ver o nevoeiro rolar
sobre a lagoa em flocos soltos, como se cuidadosamente o sol os varresse até
nada mais ficar entre a água e o céu azul. Arrumei os petrechos, atirei-os para
as costas, e, descalço, comecei a longuíssima caminhada pela praia fora, entre
o bater das ondas e a panorâmica vagarosa das arribas vermelhas.
A maré enchia, mas havia ainda
extensas toalhas de areia molhada e dura, por onde era fácil caminhar. O sol
estava quente. De cabeça descoberta, o corpo um pouco inclinado para compensar
o peso da mochila, marchava em passo certo, como era meu hábito, procurando
esquecer-me de que as pernas me pertenciam, deixando-as viver da sua vida
própria, do seu movimento mecânico. Foi assim que sempre gostei de caminhar,
vinte ou trinta quilómetros sem um descanso, apenas o rápido sorvo na bica de
uma fonte, e ala. Também não parei para almoçar: faltava-me o apetite por tanto
sol que apanhara nos dias anteriores, faltava-me sobretudo a paciência para
cozinhar na praia. Limitei-me a comer duas laranjas que se desfaziam em doçura.
Trincava as cascas ao mesmo tempo que a polpa e cuspia para longe os caroços,
como um garoto feliz. Quando as correias da mochila deram em cortar-me a pele queimada,
tirei a camisa, fiz dela uma rodilha, que acomodei no ombro esquerdo, e ali
assentei o peso. Segui para diante, aliviado das dores.
O sol ardia com mais fogo.
Sentia-o nas costas como a palma de uma mão esbraseada, ao passo que começava a
nascer e a irradiar uma espécie de adormecimento na nuca. O suor arrepiava a
pele naquele sítio. Aproximei-me da rebentação e esfreguei a cara, os ombros, a
nuca. Atirei chapadas de água para as costas. A mochila aumentara de peso.
Passei-a para o ombro direito e, tropegamente, a camisa caiu na areia
escaldante. Fiquei a olhá-la, como se nunca a tivesse visto, enquanto as correias
me vincavam o ombro. Cheguei mesmo a dar alguns passos, e foi preciso um grande
esforço para compreender que devia voltar para trás e levantá-la do chão.
Senti-me esquisito, pairando no ar, e esta sensação não me deixou, nem mesmo
quando me sentei e deixei cair de costas. Havia dentro de mim uma náusea um
pouco embaladora que me obrigou a rolar para um lado. O sol estivera a dar-me
nas pálpebras fechadas: entre os meus olhos e o céu havia uma cortina rósea, a
cor delgada do sangue que me corria confusamente dentro do corpo. Passou-me o
rápido pensamento de que estava a sentir os primeiros efeitos de uma insolação.
Inquieto, levantei-me de golpe, sacudi-me como um cão, e recomecei a caminhada.
Entretanto, a maré empurrara-me para a areia seca, que vibrava sob o calor. Das
arribas vinha o zumbido de milhares de insectos que o sol endoidecia. Nas
pausas da rebentação, a zoada, áspera como um rangido de serra circular,
atordoava-me e acentuava a sensação de náusea que não me deixara». In
José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho,
1998, ISBN 978-972-212-339-6.
Cortesia de
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