terça-feira, 14 de agosto de 2018

Elena. Marina Carvalho. «Trabalhamos muito. Olá, diz ele, exibindo as covinhas na bochecha quando sorri. Parece que essas crianças não sabem mais viver sem os seus livros. Diga-me qual é o seu feitiço»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Uma gota de suor descia lentamente pelas minhas costas enquanto eu tentava prestar atenção na pergunta feita por Dafina. Mantive o meu olhar na menina sentada bem à minha frente, muito embora o calor e a humidade estivessem roubando a minha concentração, que deveria estar totalmente voltada à aula. Querida, pode, por favor, repetir a pergunta?, pedi, com um sorriso encorajador no rosto suado. O ventilador do tecto não cumpria o seu papel de fazer vento. E, mesmo que fizesse isso, se limitaria a espalhar ar quente para os lados. Mais nada. Posso ler em voz alta? Todos os alunos da classe aguardavam ansiosos pela resposta, com os seus livros abertos na mesma página. Onde a minha cabeça andava, afinal? Claro que sim. Então a pequena nigeriana, há algum tempo arrebatada pela magia da leitura, pôs-se a narrar as estripulias de dom Quixote em companhia de seu fiel amigo e companheiro, Sancho Pança. Olhei para as cabecinhas inclinadas e suspirei profundamente. Eu conhecia cada uma daquelas crianças o suficiente para saber que o pouco que conseguia doar a elas significava muito. O que elas não sabiam: a recompensa maior era o da minha.
Fazia seis meses que eu tinha partido da Krósvia para a Nigéria, movida pela necessidade de fazer algo importante para o próximo. Não sei se por influência da minha mãe ou por causa da genética mesmo, minha tia-avó é uma humanitária de carteira, a vida inteira senti que não poderia contentar-me com a sorte que tive ao nascer em berço de ouro e fechar os meus olhos para a realidade ao meu redor. Quis estudar Línguas na faculdade não porque os professores, na Krósvia, fossem valorizados e muito bem pagos, mas sim pela possibilidade de ajudar alguém no futuro, de mostrar o caminho mágico proporcionado pela linguagem. Por isso, ainda no segundo ano de curso, surgiu a oportunidade que eu tanto esperava. Descobri um grupo de voluntários dentro da universidade. A cada ano, estudantes de medicina, odontologia, serviço social, psicologia, entre outros, partem mundo afora, em missão nas regiões de pobreza extrema. Conhecê-los foi como escutar os gritos da minha vocação. Eu também queria fazer aquilo, ser um deles, envolver-me. Claro que, assim que anunciei a minha intenção, houve resistência. Afinal: para os membros do grupo Universitários sem Fronteiras, eu era apenas a filha da princesa, ou seja, uma garota mimada e sem propósito.
Os meus pais não queriam que eu me arriscasse. Portanto, me apresentaram inúmeras alternativas de trabalhos voluntários nos limites do meu próprio país. Porém, ao acabar de completar 19 anos, eu já sabia exactamente definir o que era bom ou não para mim. Tive de ser muito persuasiva com os meus colegas de faculdade. Em contrapartida, com Ana e Alex, fui obrigada a usar todo o acervo de argumentos que eu tinha. No final, sei que o que os convenceu de verdade foi a garantia de que eu permaneceria viva e com saúde, não importa onde eu estivesse. Obstáculos vencidos, o passo seguinte era definir o meu destino. Entre algumas opções, acabaram mandando-me para um vilarejo ao norte da Nigéria. Minha missão: ensinar inglês às crianças e apresentá-las, isso mesmo, apresentá-las ao mundo da leitura. Achei que seria fácil. Mas não. Na comunidade, os pais preferiam colocar os filhos para trabalhar desde pequenos a garantir a sua educação. Sendo assim, eu e meu grupo passámos semanas e mais semanas apenas tentando alterar essa realidade. Aos poucos, fomos obtendo sucesso, embora não completamente. Ainda falta muito até que possamos dizer: Vitória!
Deixo as recordações de lado ao avistar um bracinho fino apontado para cima. Fale, Dara. Tia, eu também quero ler. A Dafina já acabou a parte dela. Sorrio para a linda menina de pele cor de ébano, prestes a atender o seu pedido, quando Dimitri, o coordenador do nosso grupo, aparece na porta da sala. Elena, podemos falar num minuto? Caminho até ele, depois de autorizar Dara a fazer a leitura em voz alta. Para ser bem sincera, Dimitri é mais que um coordenador para mim. Ele tem 23 anos, cursa engenharia civil e a sua aparência chamou a minha atenção desde a primeira vez que o vi. Porém, o que mais me encanta nele são a sua bondade e a forma humana como ele encara o próximo. Resumindo: a gente tem uma certa química, uma afinidade clara, apesar de mantermos o nosso relacionamento no nível da amizade. Aqui, na Nigéria, fica difícil investir em causas pessoais. Trabalhamos muito. Olá, diz ele, exibindo as covinhas na bochecha quando sorri. Parece que essas crianças não sabem mais viver sem os seus livros. Diga-me qual é o seu feitiço». In Marina Carvalho, Elena, a filha da princesa, Galera Record, 2015, ISBN 978-850-110-492-2.
                      
Cortesia de GaleriaR/JDACT