sábado, 25 de agosto de 2018

O Plano Infinito Isabel Allende. «E também para a invisibilidade, disse a menina. Como? Se começa a tornar-se invisível põe um colar destes e todos podem vê-lo, esclareceu Judy. Não faça caso, são coisas de criança…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Os meninos gostam de viajar atrás, mas é perigoso, não podem ir sozinhos. Olga e você tomarão conta deles. Vamos pôr Oliver à frente para não o incomodar, é ainda um cachorro, mas já tem manhas de animal velho, decidiu Charles Reeves, fazendo-lhe sinal para subir.
O soldado atirou a mochila para cima do monte de objectos e trepou, esticou os braços para receber o menino mais pequeno, que Reeves tinha levantado sobre a cabeça, um puto fraco, de orelhas saídas e um sorriso irresistível que lhe enchia a cara de dentes. Quando regressaram a mulher e a menina subiram também para trás, os outros dois entraram na cabina e pouco depois o camião pôs-se em marcha.
Chamo-me Olga e estes são Judy e Gregory, apresentou-se a de cabelo impossível, sacudindo a saia enquanto distribuía maçãs e bolachas. Não se sente sobre essa caixa, ai vai a jibóia, e não pode tapar-lhe os buracos de ventilação, acrescentou. O pequeno Gregory parou de tirar a língua de fora logo que deu conta de que o viajante vinha da guerra, então uma expressão reverente substituiu as caretas brincalhonas e começou a interrogá-lo sobre aviões de combate, até ficar vencido pela modorra. O soldado tentou conversar com a ruiva, mas ela respondia com monossílabos e não se atreveu a insistir. Pôs-se a cantarolar canções da sua aldeia, olhando de soslaio a caixa misteriosa, até que os outros adormeceram sobre a pilha de fardos, então pôde observá-los à vontade. Os meninos tinham cabelo quase branco e os olhos tão claros que de perfil pareciam cegos, em contrapartida a mulher tinha a cor azeitonada de algumas raças mediterrânicas. Tinha os primeiros botões de blusa abertos, gotas de suor molhavam-lhe o decote e desciam como um lento fio pelo rego dos seios. Tinha levantado um braço para apoiar a cabeça sobre um caixote, revelando velos escuros nas axilas e uma mancha húmida no tecido. Desviou os olhos, receando ser surpreendido e que ela interpretasse mal a sua curiosidade, até então aquelas pessoas tinham sido amáveis, pensou, mas nunca se pode estar seguro com os brancos. Deduziu que os miúdos eram do outro casal, ainda que a julgar pelas idades aparentes dos Reeves também pudessem ser seus netos. Passou revista à carga e chegou à conclusão de que aquela gente não estava a mudar de casa, como tinha suposto a principio, mas que viajavam na sua vivenda permanente. Notou que levavam um tambor com vários galões de água e outros com combustível e perguntou a si mesmo como é que conseguiam gasolina, racionada pela guerra desde há um bom tempo. Tudo estava disposto numa ordem meticulosa, de fateixas e ganchos penduravam utensílios e ferramentas, compartimentos exactos continham as maletas, nada ficava solto, cada embrulho estava marcado e havia várias caixas com livros. O calor e as sacudidelas da viagem depressa o esgotaram e adormeceu recostado na gaiola dos frangos. Despertou a meio da tarde, ao sentir que paravam. O corpo do rapaz sobre as suas pernas não pesava quase nada, mas a imobilidade tinha-lhe entorpecido os músculos e sentia a garganta seca. Por alguns instantes não soube onde estava, meteu a mão no bolso das calças à procura do cantil de uísque e bebeu um longo golo para aclarar o espírito. A mulher e os meninos estavam cobertos de pó e o suor marcava-lhes linhas pelas bochechas e pelo pescoço. Charles Reeves tinha-se desviado do caminho e encontravam-se debaixo de um grupo de árvores, única sombra naquela desolação, acampariam ali para o motor arrefecer, mas no dia seguinte podia levá-lo a casa, explicou ao soldado, que então estava mais tranquilo, aquela estranha família começava a inspirar-lhe simpatia. Reeves e Olga baixaram alguns embrulhos do camião e armaram as estafadas tendas de campanha, enquanto a outra mulher, que se apresentou como Nora Reeves, preparava a comida num fogareiro a petróleo com a ajuda da sua filha Judy, e o rapaz procurava paus para uma fogueira, com o cão atrás dos seus sapatos. Vamos caçar lebres, pai?, suplicou puxando as calças do pai.
Hoje não há tempo para isso, Greg, respondeu Charles Reeves tirando um frango da gaiola e rebentando-lhe a nuca com um esticão firme no pescoço. Não se consegue carne. Guardamos os frangos para ocasiões especiais..., explicou Nora, como se pedisse desculpas. Hoje é um dia especial, mãe?, perguntou Judy. Sim, filha, o senhor King Benedict é nosso convidado. Ao entardecer o acampamento estava pronto, a ave fervia numa panela e cada qual cumpria a sua tarefa, à luz dos candeeiros de carbureto e ao calor do fogo: Nora e os rapazes faziam trabalhos escolares, Charles Reeves folheava uma manuseada cópia do National Geographic e Olga fabricava colares com contas de cores. São para a boa sorte, disse ao hóspede. E também para a invisibilidade, disse a menina. Como? Se começa a tornar-se invisível põe um colar destes e todos podem vê-lo, esclareceu Judy. Não faça caso, são coisas de criança, riu Nora Reeves. É verdade, mãe! Não contradigas a tua mãe, cortou Charles Reeves secamente». In Isabel Allende, O Plano Infinito, Edições Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-004-7.

Cortesia de EInapa/JDACT