sábado, 9 de outubro de 2021

A Casa dos Espíritos. Isabel Allende. «Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta…»

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«(…) Rosa, no entanto, não tinha pressa em casar-se, quase esquecera o único beijo que haviam trocado na despedida e também a cor dos olhos desse noivo tenaz. Por influência das novelas românticas, que eram a sua única leitura, gostava de o imaginar com botas de cabedal, a pele queimada pelos ventos do deserto, cavando a terra em busca de tesouros de piratas, dobrões espanhóis e jóias dos Incas, e era inútil que Nívea a tentasse convencer de que as riquezas das minas estavam metidas nas pedras, porque para Rosa era impossível que Esteban Trueba recolhesse toneladas de penhascos na esperança de que, ao submetê-los a iníquos processos crematórios, cuspissem um grama de ouro. Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo.

Uma barba do espartilho de Nívea quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar dentro do vestido de veludo azul, com a gola de renda demasiado alta, as mangas muito estreitas, a cintura tão apertada que, quando tirava o cinto, passava uma boa meia hora com retorcidelas de barriga até as tripas se acomodarem na sua posição normal. Tinham discutido isso muitas vezes, ela e as amigas sufragistas, e haviam chegado à conclusão de que, enquanto as mulheres não encurtassem as saias e o cabelo e não despissem os saiotes, tudo ficava na mesma, mesmo que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque de modo algum teriam coragem de o fazer; ela própria não tinha coragem para ser das primeiras a abandonar a moda. Notou que a voz da Galiza tinha deixado de martelar-lhe o cérebro. Estava numa dessas grandes pausas do sermão que o padre empregava com frequência, por conhecer bem o efeito de um silêncio incómodo. Os seus olhos ardentes aproveitavam esses momentos para observar os paroquianos um por um. Nívea largou a mão de Clara e procurou um lenço na manga para enxugar uma gota de suor que lhe escorria pelo pescoço. O silêncio tornou-se pesado, o tempo pareceu parar dentro da igreja, mas ninguém se atreveu a tossir ou a ajeitar-se no banco, para não atrair a atenção do padre Restrepo. As suas últimas frases ainda vibravam entre as colunas.

E nesse momento, como Nívea recordou anos mais tarde, no meio da ansiedade e do silêncio, ouviu-se com toda a nitidez a voz da pequena Clara: Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta, que já estava no ar para assinalar novos suplícios, ficou suspenso como um pára-raios sobre a sua cabeça. As pessoas deixaram de respirar e os que estavam cabeceando acordaram. Os esposos del Valle foram os primeiros a reagir ao sentir que o pânico os invadia e ao ver que os filhos começavam a agitar-se nervosos. Severo compreendeu que devia actuar antes que rebentasse o riso geral ou se desencadeasse algum cataclismo celestial. Pegou na mulher pelo braço e em Clara pelo pescoço e saiu arrastando-as a grandes passadas, seguido pelos outros filhos, que se precipitaram em tropel para a porta. Conseguiram sair antes que o sacerdote pudesse invocar um raio que os transformasse em estátuas de sal, mas do umbral da porta ouviram a sua terrível voz de arcanjo ofendido: Endemoninhada! Soberba endemoninhada!» In Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, 1982, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-445-7.

Cortesia de PEditora/JDACT

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