«O som abafado atraiu a atenção de Patricia. Quem está aí? Pareceu-lhe que o barulho tinha vindo da Sala Inventario Manoscritti, bem ao lado da Sala Consultazioni Manoscritti, onde ela se encontrava, mas não viu nada de anormal. Os livros permaneciam em silêncio nas prateleiras ricamente trabalhadas daquela ala da Biblioteca Apostólica Vaticana, como adormecidos pela sombra que a noite projectava sobre as lombadas poeirentas. Aquela podia ser a mais antiga biblioteca da Europa, e talvez também a mais bela, mas à noite o local respirava uma atmosfera soturna, quase intimidante, como se uma ameaça oculta pairasse por ali. Ay, madre mia!, murmurou, estremecendo para debelar o medo irracional que se apossara dela por alguns momentos. Estou vendo filmes demais!... Deve ter sido o empregado passando, pensou. Espiou o relógio; os ponteiros marcavam quase onze e meia da noite. Não eram as horas normais de expediente na biblioteca, mas Patricia Escalona tornara-se amiga pessoal do prefetto, monsenhor Luigi Viterbo, que recebera em Santiago de Compostela durante o Xacobeo de 2010. Acometido por uma crise mística, monsenhor Viterbo decidira então percorrer a pé o Caminho de Santiago e, graças a um amigo comum, fora bater à porta da historiadora. Em boa hora o fez, porque ela cobriu-o de atenções quando o recebeu em casa, um belo apartamento convenientemente localizado numa ruela logo atrás da catedral. Por tudo isso, quando chegou a Roma para consultar aquele manuscrito, Patricia não hesitou em cobrar o favor. O facto é que o prefetto da Biblioteca Apostólica Vaticana se mostrara à altura do pedido e, retribuindo as honras que o haviam rodeado em Compostela, mandou abrir à noite a Sala Consultazioni Manoscritti especialmente para que sua amiga galega fizesse com absoluta tranquilidade o trabalho que pretendia. Mas fez mais do que isso. O prefetto mandou buscar o próprio original para ela consultar. Caramba, não era preciso tanto!, respondera então Patricia, quase embaraçada. Os microfilmes teriam servido perfeitamente. Mas não, monsenhor Viterbo fizera questão de mimá-la. Para uma historiadora do seu gabarito, insistira ele, apenas o original seria o suficiente! E que original.
A pesquisadora galega passou as
mãos enluvadas pelos caracteres castanhos desenhados à mão com meticulosidade
de copista piedoso, sobre folhas de pergaminho bastante envelhecido e manchado
por nódoas do tempo que os arquivistas haviam guardado em placas de material
transparente. O manuscrito era composto de uma maneira que lhe fazia lembrar o Codex Marchalianus ou o Codex Rossanensis. A diferença é
que era muito mais valioso. Respirou fundo e sentiu-lhe o cheiro adocicado. Ah,
que maravilha! Como adorava o perfume quente que o papel antigo exalava!...
Passeou os olhos enamorados pelos caracteres pequenos e muito bem-arrumados,
sem ornamentos nem maiúsculas, o grego corrido numa linha contínua, as letras arredondadas
e equidistantes, as palavras sem nada as separando, como se cada linha fosse na
verdade um único verbo, interminável e misterioso, um código arcano soprado por
Deus na génese do tempo. A pontuação era rara, havendo aqui e ali espaços em
branco, diéreses e abreviaturas dos nomina
sacra e aspas invertidas para as citações do Antigo
Testamento, a exemplo do que ela já vira no Codex Alexandrinus. Mas o manuscrito que tinha à frente era
o mais precioso de todos que já manuseara. Só o título, aliás, impunha
respeito: Bibliorum Sacrorum Graecorum
Codex Vaticanus B.
O Codex Vaticanus.
Custou a acreditar, mas a verdade
é que o funcionário da Biblioteca Apostólica Vaticana, agindo sob ordens do prefetto, lhe pusera na mesa o célebre
Codex Vaticanus. Aquela
relíquia de meados do século IV era o mais antigo manuscrito sobrevivente da Bíblia
praticamente completa em grego, o que fazia dela o maior tesouro da Biblioteca
Apostólica Vaticana. E, vejam só, havia-lhe sido confiada. Que coisa incrível.
Alguém na universidade iria acreditar?
Virou a página com extremo
cuidado, quase como se receasse danificar o pergaminho, apesar de ele estar
protegido pela placa de material transparente, e mergulhou quase
instantaneamente no texto. Percorreu o primeiro capítulo da Carta aos Hebreus;
o que procurava estava por ali, perto do início. Passou os olhos pelas linhas,
os lábios murmurando as frases em grego como se entoasse uma ladainha, até por
fim chegar à palavra que buscava. Ah, aqui está!, exclamou. Phanerón. Era extraordinário. Já tinham lhe falado naquele vocábulo,
mas uma coisa era conversar sobre o assunto à mesa da cantina da faculdade e
outra vê-lo diante dos olhos em plena Biblioteca Apostólica Vaticana, desenhado
por um copista do século IV mais ou menos na época em que Constantino adoptou o
cristianismo e em que se realizou o Concílio de Niceia, onde o essencial da
teologia cristológica ficou enfim definido. Sentia-se em êxtase. Ah, que sensação!
Só de pensar que… Mais um barulho.
Com um salto de susto, Patricia
voltou ao presente e fixou a atenção de novo na Sala Inventario Manoscritti, à
direita, de onde mais uma vez lhe pareceu ter vindo o som. Tem alguém aí?,
perguntou, com voz trémula. Ninguém respondeu. A sala parecia deserta, embora
fosse difícil ter a certeza, considerando todas aquelas sombras e a penumbra.
Será que o barulho tinha vindo da Leonina? O grande salão da biblioteca encontrava-se
para lá do seu campo de visão, por isso não tinha como se certificar. Sob o
manto da noite aquele lugar lhe dava calafrios. Signore!, chamou ela no seu italiano espanholado, em voz
alta, buscando o empregado que o prefetto
havia designado só para atendê-la. Per favore, signore!»
In José
Rodrigues dos Santos, O Último Segredo, 2011, Edições Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-446-1.
Cortesia de EGradiva/JDACT
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Vaticano, Literatura,