«(…) Logo eu descobriria a origem do trauma de Jason e ele descobriria que, apesar de nossas óbvias diferenças, tínhamos muita coisa em comum. Ambos conhecíamos a violência. E ambos sabíamos como era ficar paralisado. Eu também carregava uma ferida dentro de mim, uma tristeza tão profunda que por muitos anos não fora capaz de falar a respeito com ninguém. O passado ainda me assombrava: uma sensação de atordoamento e ansiedade sempre surgia quando eu ouvia sirenes, passos pesados ou homens gritando. Isso, eu aprendera, é o trauma. A sensação quase permanente no estômago de que alguma coisa está errada, ou de que algo terrível está para acontecer, faz as respostas automáticas do medo em meu corpo me dizerem para fugir, me proteger, me esconder do perigo que está em toda parte. Meu trauma pode ainda aparecer em situações prosaicas. Uma visão súbita ou um cheiro específico têm o poder de me transportar de volta para o passado. No dia em que conheci o capitão Fuller, fazia mais de trinta anos que eu tinha sido libertada dos campos de concentração do Holocausto. Hoje, mais de setenta anos se passaram. O que aconteceu não pode ser esquecido, muito menos mudado. Porém, ao longo do tempo, aprendi que posso escolher como reagir ao passado. Posso sentir-me triste ou esperançosa, posso ficar deprimida ou feliz. Sempre temos essa escolha, essa oportunidade de controle. Estou aqui, isso é agora, aprendi a repetir para mim mesma, sem parar, até o pânico começar a diminuir. O senso comum diz que se uma coisa incomoda ou provoca ansiedade, simplesmente não deve olhar para ela. Não deve encará-la. Portanto, temos o hábito de fugir dos traumas do passado, das dificuldades, dos conflitos e dos desconfortos. Durante grande parte da minha vida adulta eu achei que minha sobrevivência no presente dependia de manter afastados o passado e o sofrimento que ele provocava. Nos meus primeiros anos como imigrante em Baltimore, nos Estados Unidos nos anos 1950, eu nem sequer sabia como pronunciar Auschwitz em inglês. Não que eu quisesse contar que estive lá. Eu não queria que ninguém sentisse pena de mim. Não queria que ninguém soubesse. Eu queria falar inglês sem sotaque e me esconder do passado. Na ânsia de me integrar e com medo de ser engolida pelos meus traumas, me esforcei bastante para manter minha dor em segredo. Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação, ambos baseados no medo, eram maneiras de fugir de mim mesma. Nem que ao escolher não enfrentar directamente a mim ou ao passado, eu ainda escolhia não ser livre, mesmo décadas depois de meu encarceramento. Eu tinha um segredo que me aprisionava. O capitão do Exército catatónico, sentado imóvel no meu sofá, me lembrou de algo que eu descobrira com o tempo: que quando obrigamos nossas verdades e histórias a se esconderem, os segredos podem se tornar o próprio trauma, a própria prisão. Longe de diminuir a dor, o que nos recusamos a aceitar se torna tão intransponível quanto as paredes de tijolos e barras de aço. Quando não nos permitimos sofrer por nossas perdas, feridas e decepções, estamos condenados a revivê-las. A liberdade está em aprender a aceitar o que aconteceu. Liberdade significa reunir coragem para desmantelar a prisão, tijolo por tijolo.
Coisas
ruins acontecem em todo o universo. Não podemos mudar isso. Se olharmos para a
nossa certidão de nascimento, por acaso lá está escrito que a vida será fácil?
Não, mas muitas pessoas permanecem presas num trauma ou dor, incapazes de viver
de maneira plena. Isso, no entanto, é possível mudar. Recentemente, no
Aeroporto de Nova York, enquanto esperava meu voo de volta para casa em San
Diego, fiquei sentada analisando os rostos de cada estranho que passava. O que
vi me emocionou profundamente. Vi tédio, fúria, tensão, preocupação, confusão,
desânimo, decepção, tristeza e, o mais preocupante, vazio. Fiquei muito triste
ao notar tão pouca alegria naqueles rostos. Mesmo os momentos mais maçantes da
vida são oportunidades para sentir esperança, leveza, felicidade. A rotina faz
parte da vida, assim como o sofrimento e o stress. Por que algumas vezes nos
esforçamos para nos sentirmos vivos e outras nos distanciamos da sensação de
viver plenamente? Porque é tão desafiador trazer vida para a vida? Se me
perguntasse qual é o diagnóstico mais comum entre as pessoas que atendo, eu não
diria depressão ou transtorno de stress pós-traumático, embora essas doenças
sejam bastante recorrentes entre aqueles que conheço, amo e oriento para a
liberdade. Eu diria que é a fome. Temos fome. Fome de aprovação, de atenção, de
afeição. Temos fome de liberdade para aceitar a vida e para realmente nos
conhecermos e sermos nós mesmos». In Edith Eva Eger, A Bailarina de
Auschwitz, 2017, Editora Desassossego, 2018, ISBN 978-989-889-218-8.
JDACT, Edith Eva Eger, Guerra, Literatura, Conhecimento,