«(…) Levantou a cabeça e apreciou a lua cheia lá no alto, irradiando um halo prateado sobre a majestosa Coluna de Trajano. A noite era sem dúvida o momento que mais apreciava para trabalhar ali no centro de Roma; de dia o trânsito tornava tudo caótico. O clamor das buzinas e o ronco furioso das britadeiras revelavam-se absolutamente infernais. Consultou o relógio. Já era uma da manhã, mas estava determinado a aproveitar a pausa que o sono dos motoristas romanos lhe havia concedido durante a noite para adiantar o máximo de trabalho. Só sairia dali às seis da manhã, quando os carros começassem a atrapalhar o movimento das ruas e o concerto das buzinas e das britadeiras recomeçasse. Nessa altura iria dormir no seu pequeno hotel na Via del Corso. O telefone móvel tocou no bolso das calças, arrancando-lhe uma expressão inquisitiva. Àquela hora? Quem diabo lhe ligaria à uma da manhã? Verificou o visor do telemóvel e, depois de identificar o autor da chamada, apertou o botão verde.
O que houve?
A voz da mãe lhe soou no aparelho
no habitual queixume inquieto. Filho,
quando volta para casa? Já faz tanto tempo... Mãe, já lhe disse que
estou fora do país, explicou Tomás, enchendo-se de paciência; era a terceira
vez que lhe dizia a mesma coisa nas últimas vinte e quatro horas. Mas volto na
próxima semana, está bem? Vou visitá-la aí em Coimbra. Onde está, rapaz? Em Roma. Teve vontade de acrescentar que era a
milésima vez que o repetia, mas conteve a irritação. Fique tranquila, logo que
voltar a Portugal vou vê-la. Mas o que
está fazendo em Roma? Limpando pedras, quis responder. E não estaria
mentindo, considerou, lançando um olhar ressentido ao pincel. Vim ao serviço da
Gulbenkian, acabou por esclarecer. A fundação está envolvida na restauração das
ruínas do fórum e dos mercados de Trajano, aqui em Roma, e vim acompanhar os
trabalhos. Mas desde quando é
arqueólogo? Era uma boa pergunta! Apesar do Alzheimer que por vezes lhe
nublava o discernimento, a mãe fizera uma pergunta bem certeira. Não sou.
Acontece que o fórum tem duas grandes
bibliotecas e, sabe como é, quando se fala em livros antigos…
A conversa não durou muito e, no instante em que desligou, Tomás
sentiu-se incomodado por um sentimento de culpa por quase ter se irritado
durante o telefonema. A mãe não tinha responsabilidade nenhuma pelos acessos de
amnésia provocados pela doença. Umas vezes melhorava e outras piorava; ultimamente
andava pior e fazia mil vezes as mesmas perguntas. Os seus lapsos de memória
tornavam-se enervantes, mas teria de ter mais paciência. Pegou de novo o
pincel, aproximou-o da pedra e voltou a escovar. Quando viu a nuvem libertar-se
daquele pedaço de ruína pensou que, como um minerador, já deveria estar com os
pulmões carregados do miserável pó marrom que se
entranhara por toda a parte. Da
próxima vez traria uma máscara, como as dos cirurgiões. Ou talvez o melhor
fosse escapar daquele trabalho e se dedicar aos relevos que decoravam a Coluna
de Trajano. Levantou os olhos para o monumento. Sempre tivera curiosidade de
observar as cenas da campanha na Dácia, gravadas na coluna e que apenas
conhecia dos livros. Já que estava ali, porque não as estudar ao vivo e de
perto? Escutou um burburinho atrás de si e virou a cabeça. Viu o responsável
pelas obras de restauração, o professor Pontiverdi, falando alto com um homem engravatado
e, com gestos espalhafactosos e uma voz estridente, mandá-lo ficar quieto.
Depois aproximou-se de Tomás e esboçou um sorriso obsequioso. Professore Norona… Noronha,
corrigiu Tomás, divertindo-se por ninguém conseguir acertar a pronúncia correcta
do seu nome. Diz-se nhe, como
em bagno. Ah, certo! Noronha! Isso!» In José Rodrigues dos Santos, O Último Segredo, 2011, Edições Gradiva,
2011, ISBN 978-989-616-446-1.
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Vaticano, Literatura,