quarta-feira, 20 de outubro de 2021

José Rodrigues dos Santos. O Último Segredo. « voz da mãe lhe soou no aparelho no habitual queixume inquieto. Filho, quando volta para casa? Já faz tanto tempo... Mãe, já lhe disse que estou fora do país, explicou Tomás…»

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«(…) Levantou a cabeça e apreciou a lua cheia lá no alto, irradiando um halo prateado sobre a majestosa Coluna de Trajano. A noite era sem dúvida o momento que mais apreciava para trabalhar ali no centro de Roma; de dia o trânsito tornava tudo caótico. O clamor das buzinas e o ronco furioso das britadeiras revelavam-se absolutamente infernais. Consultou o relógio. Já era uma da manhã, mas estava determinado a aproveitar a pausa que o sono dos motoristas romanos lhe havia concedido durante a noite para adiantar o máximo de trabalho. Só sairia dali às seis da manhã, quando os carros começassem a atrapalhar o movimento das ruas e o concerto das buzinas e das britadeiras recomeçasse. Nessa altura iria dormir no seu pequeno hotel na Via del Corso. O telefone móvel  tocou  no bolso das calças, arrancando-lhe uma expressão inquisitiva. Àquela hora? Quem diabo lhe ligaria à uma da manhã? Verificou o visor do telemóvel  e, depois de identificar o autor da chamada, apertou o botão verde.

O que houve?

A voz da mãe lhe soou no aparelho no habitual queixume inquieto. Filho, quando volta para casa? Já faz tanto tempo... Mãe, já lhe disse que estou fora do país, explicou Tomás, enchendo-se de paciência; era a terceira vez que lhe dizia a mesma coisa nas últimas vinte e quatro horas. Mas volto na próxima semana, está bem? Vou visitá-la aí em Coimbra. Onde está, rapaz? Em Roma. Teve vontade de acrescentar que era a milésima vez que o repetia, mas conteve a irritação. Fique tranquila, logo que voltar a Portugal vou vê-la. Mas o que está fazendo em Roma? Limpando pedras, quis responder. E não estaria mentindo, considerou, lançando um olhar ressentido ao pincel. Vim ao serviço da Gulbenkian, acabou por esclarecer. A fundação está envolvida na restauração das ruínas do fórum e dos mercados de Trajano, aqui em Roma, e vim acompanhar os trabalhos. Mas desde quando é arqueólogo? Era uma boa pergunta! Apesar do Alzheimer que por vezes lhe nublava o discernimento, a mãe fizera uma pergunta bem certeira. Não sou. Acontece que o fórum  tem duas grandes bibliotecas e, sabe como é, quando se fala em livros antigos…

A conversa não durou  muito e, no instante em que desligou, Tomás sentiu-se incomodado por um sentimento de culpa por quase ter se irritado durante o telefonema. A mãe não tinha responsabilidade nenhuma pelos acessos de amnésia provocados pela doença. Umas vezes melhorava e outras piorava; ultimamente andava pior e fazia mil vezes as mesmas perguntas. Os seus lapsos de memória tornavam-se enervantes, mas teria de ter mais paciência. Pegou de novo o pincel, aproximou-o da pedra e voltou a escovar. Quando viu a nuvem libertar-se daquele pedaço de ruína pensou que, como um minerador, já deveria estar com os pulmões carregados do miserável pó marrom que se

entranhara por toda a parte. Da próxima vez traria uma máscara, como as dos cirurgiões. Ou talvez o melhor fosse escapar daquele trabalho e se dedicar aos relevos que decoravam a Coluna de Trajano. Levantou os olhos para o monumento. Sempre tivera curiosidade de observar as cenas da campanha na Dácia, gravadas na coluna e que apenas conhecia dos livros. Já que estava ali, porque não as estudar ao vivo e de perto? Escutou um burburinho atrás de si e virou a cabeça. Viu o responsável pelas obras de restauração, o professor Pontiverdi, falando alto com um homem engravatado e, com gestos espalhafactosos e uma voz estridente, mandá-lo ficar quieto. Depois aproximou-se de Tomás e esboçou um sorriso obsequioso. Professore Norona… Noronha, corrigiu Tomás, divertindo-se por ninguém conseguir acertar a pronúncia correcta do seu nome. Diz-se nhe, como em bagno. Ah, certo! Noronha! Isso!» In José Rodrigues dos Santos, O Último Segredo, 2011, Edições Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-446-1.

 Cortesia de EGradiva/JDACT

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