Os manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto
«Temos a honra e o
privilégio de ter entre nós uma curiosa exposição sobre antiquíssimos
manuscritos bíblicos e todo o contexto arqueológico em que se encontravam
envolvidos. Na verdade, os Documentos de
Qumrah, ou Manuscritos do Mar Morto,
ou Rolos do Deserto de Judá, já que
variados são os nomes para indicar a sensacional descoberta deste conjunto de
documentos judaicos, fazem-nos dar o salto qualitativo e cronológico do século
X d.C. para o século II a.C., da Idade
Média para antes de Jesus Cristo. Na verdade, estes numerosos documentos
manuscritos, mais de 800, e inumeráveis e complicados fragmentos, constituem
verdadeira biblioteca. Por um lado, apresentam-nos documentos em hebraico,
aramaico e grego; por outro lado, dada a importância e antiguidade dos
manuscritos bíblicos, põem-nos diante do problema científico da fidelidade e
veracidade do texto hebraico massorético, constituído bastante mais
tarde; dão-nos ainda a conhecer o quadro ideológico judaico ao tempo do
nascimento do Evangelho cristão, isto é, o
ambiente vital em que o Cristianismo nasceu. Com os documentos de
Qumrah, portanto, é todo um labirinto de problemas a afectar o mundo das
ciências bíblicas e das origens do Cristianismo, que veio trazer algumas
perturbadoras perguntas sobre a figura de João Baptista, cuja vida e
pregação os Evangelhos cristãos situam no Deserto de Judá. Terá ele
sido, afinal, um membro desta desaparecida comunidade, possivelmente essénica,
que, ao fugir dos romanos aquando da primeira revolta judaica de 66-70,
escondeu os seus preciosos
manuscritos? O próprio Cristianismo é tocado pela questão do messianismo
e pela hipotética identificação do Mestre
de Justiça com Jesus Cristo. Terá mesmo Jesus sido influenciado pelas doutrinas dos essénios? Terá Jesus
aprendido ou tirado deles alguma
coisa?
O acaso da descoberta e a riqueza das pesquisas arqueológicas
Um mero acaso está na
origem da mais sensacional e importante descoberta de documentação hebraica. Na
Primavera de 1947, um pastor da
tribo beduína dos Ta`âmirah, que vagueiam com seus rebanhos ao sabor da
transumância entre Belém e o Mar Morto, o Mar do Sal para os hebreus, Yam HaMmelah, encontrava-se quase
na embocadura do Wâdi Qumrah, um desses muitos ribeiros secos, que atravessam
o deserto de Judá. Estava preocupado e aflito pelo desaparecimento duma cabra.
Olhando para a parede rochosa do Wâdi, viu um buraco e atirou uma pedra,
porque talvez a cabra tivesse entrado por ali. Ficou, porém, atarantado porque
a pedra produzira um baque, como se se tivesse partido qualquer objecto de
barro. Assustado, juntou o rebanho e partiu para o acampamento, mas, ainda
assim, decido a voltar com um amigo para encontrar resposta àquele ruído estranho.
Muhammad ed-Di`b (Maomé o Lobo)
voltou no dia seguinte com um primo, e penetraram na gruta. Descobriram, então,
uma gruta com pedaços de barro partidos e 8 jarras ou ânforas intactas, 7 das
quais vazias, mas dentro da oitava acharam três rolos de couro, que levaram a
um antiquário de Belém para vender. Este, pensando que estavam escritas em
caracteres siríacos, levou-as a Mar Atanásio, arquimandrita do mosteiro
siríaco de S. Marcos de Jerusalém. Era a descoberta em 1947 da gruta nº 1 de Qumrah (1 Q). A notícia da descoberta divulgou-se
e outros beduínos começaram a fazer pesquisas por conta própria, de tal modo
que em Dezembro de 1947, a
Universidade Hebraica de Jerusalém, por meio do arqueólogo judeu Eliezer
Sukenik, que tinha intuído a antiguidade dos documentos e a sua ligação
aos essénios, comprou um maço de três manuscritos, que hoje se conservam e
mostram através de réplicas no Santuário do Livro em Jerusalém.
Entretanto, em Fevereiro
de 1948, Mar Atanásio mostrou
os 4 rolos da 1 Q à ASOR (American
School of Oriental Research) para ver se os seus técnicos podiam decifrar
aquela estranha escrita. Contudo, o rebentar da guerra pela independência de
Israel, obrigou-o a emigrar para os Estados Unidos, levando consigo os
manuscritos, onde, em seguida, por intermédias pessoas, o novo Estado de Israel
os comprou por 250 mil dólares. Após o armistício da guerra
Palestino-Israelita, em Julho de 1948,
com a divisão da Palestina entre Israel e a Jordânia, a parte oriental da
Palestina, chamada Cisjordânia, ficou integrada no Reino Hashemita da
Jordânia e, logo no começo de 1949,
o Departamento de Antiguidades da Jordânia, em colaboração com a École Biblique et Archéologique Française
e outras instituições científicas de Jerusalém oriental, empreendeu escavações
na região de Qumrah, cujas descobertas arqueológicas, desde 1947
a 1958, foram logo estudadas e publicadas. Quando em 1951 decorria a campanha associada de
escavações, os beduínos trouxeram a Jerusalém mais um lote de documentos
descobertos um pouco mais abaixo nas grutas de Murabba`ât, que foram
datados da 2ª Guerra Judaica, entre 132-135, a revolta de Bar Kokheba
(Filho da Estrela) no tempo de
imperador Adriano. Há mesmo algumas cartas autografas deste chefe de rebelião,
considerado um avatar messiânico ou realização messiânica da profecia de
Balaão, segundo o Livro dos Números: Eu
vejo, mas não para já; contemplo-o, mas ainda não próximo. Uma estrela surge de
Jacob e um ceptro se ergue de Israel.
Em Fevereiro de 1952, os beduínos Ta`âmirah descobriam
a 2
Q com fragmentos semelhantes aos da 1 Q. Imediatamente se
associaram em pesquisa arqueológica, sob a direcção do Pe. Roland De Vaux, OP,
os vários organismos interessados na antiguidade (Direction des Antiquités
de Jourdanie, École Biblique et Archéologique Française, American School of
Oriental Research, Palestine Museum ou Rockefeller Museum). De facto,
passaram a pente fino numa pesquisa arqueológica sistemática toda a região da zona
rochosa ou falésia de Qumrah com uma extensão de 8 quilómetros passando por
`Ain Fesha, a fonte de água potável da região, até às grutas Murabba´at.
Exploraram também o sítio das ruínas das instalações de Qumrah ou antigo
mosteiro de Qumrah, possivelmente sede dos essénios». In Geraldo Coelho Dias, Judaísmo,
Os Manuscritos de Qumrah e a Comunidade Judaica do Mar Morto. Texto inédito.
Conferência no Museu dos Transportes e Comunicações. Porto. Maio de 2005.