«(…) Era, de facto, uma boa prenda. E aquela cópia, aqueles rolos, de
punhos de madeira exótica lavrada, aquele estojo, deviam ter-lhe custado bom
dinheiro. No decorrer da conversa contou-nos que tinha viajado de Tarcisis a
Vipasca para tratar de formalidades legais respeitantes a negócios duma viúva,
sua cliente. As minhas propriedades não ficam no caminho de Vipasca. Proserpino,
no regresso, abalançou-se a um grande desvio, fora das estradas patrulhadas, só
para me visitar. Viera a medo. Esperava, certamente, ser recebido com altanaria
ou brusquidão, e a nossa franqueza, nas suas palavras, sensibilizava-o muito. Contou-nos
pormenores da viagem e não nos poupou à descrição dos assuntos que motivavam a
sua deslocação. De vez em quando, eu olhava disfarçadamente para Mara, como perguntando:
que nos quer este? Mara,
sempre arguta, percebia o que me incomodava e apressava-se a não deixar morrer
a conversação. Mal Proserpino fazia uma pausa, logo ela acudia com
perguntas e comentários, mantendo a prática arredada do assunto que sabia capaz
de me ferir: Tarcisis.
Que tacto, o de Mara... Mas confirmei também em Proserpino a
vontade de nunca abordar os eventos de que eu tinha sido comparte, anos antes.
E não foi apenas por falta de oportunidade, devido à atenção cerrada de Mara.
Foi por não ter, manifestamente, querido. Em boa consciência, não me ocorrem
muitos elogios a Proserpino. Sempre senti por ele um incomodado desdém e
não duvido de que ele o saiba. Mas vejo-me forçado a reconhecer, debaixo
daquela natureza volúvel, interesseira e manhosa, uns restos de nobreza que o
impediram de me embaraçar. Se eu não estava com curiosidade das notícias de Tarcisis? Por dentro,
embora não o deixasse transparecer, eu ardia em curiosidade. Mas,
contraditoriamente, apavorava-me a ideia de que o assunto fosse sequer
mencionado e ainda por cima por Proserpino. Queria preservar a minha
paz, ganhara o direito ao pântano. Seria uma grande crueldade se alguém, comigo
inteiramente indefeso, viesse remexer nas feridas antigas.
Mas Mara e Proserpino, cada um por seu lado, como se houvesse
entre eles um conluio secreto, apenas mencionaram Tarcisis como mero
sinal geográfico: ponto de partida, ponto de chegada, referência espacial, nada
mais. Calculo como Mara haveria de querer saber de tanta coisa, e como Proserpino
haveria de estar ansioso por brilhar, ali no meu triclínio, exercitando a sua
mordacidade, à custa da vida dos outros. Mas deu-se o milagre. A minha
curiosidade, é certo, não foi satisfeita, mas o meu orgulho, o que mais conta,
não foi atingido. Em dada altura, Proserpino, já, de voz entaramelada,
dispôs-se a fazer o meu elogio: - Nunca, ouviste,
Lúcio? Nunca encontrei pela frente um juiz tão recto e tão sabedor como
tu. E já não sou nenhuma criança... - Não ganhaste muitas causas no meu
tribunal... - Não ganhei eu, mas ganhou a justiça! Não, naquela cidade nunca
houve julgador mais íntegro, Lúcio.
E Proserpino estendeu-me a taça, numa saudação sentida, com a
mão já tremente. Não insistiu em rememorar os pleitos de outros tempos, um dos
quais, sabia-o ele melhor que ninguém, foi causa da minha amargura e do meu desconforto...
Embrenhou-se antes em considerações elevadas sobre o sentido da existência e os
preceitos de vida adequados a desfeitear as incertezas do destino. Acabámos o
serão com Proserpino a interrogar-me sobre pontos de Mitologia. Só nessa
altura, com algum alívio, me convenci de que ele não faria qualquer alusão a Iunia
Cantaber... - Achas, Lúcio, que Minos, quando poupou o Minotauro e o
encerrou no labirinto, antevia já, por inspiração dos deuses, os feitos de
Teseu, ou, pelo contrário, queria preservar o monstro, para manter sempre viva
a materialidade da culpa de Pasifaé?
Eu ia respondendo, como me ia ocorrendo. Fui submetido a um
interrogatório cada vez mais obtuso, sobre Aquiles e Próculo, Morfeu e Alcíone,
e os Sete contra Tebas. Proserpino já não ouvia as minhas últimas
opiniões. Os acenos de cabeça com que apoiava as minhas palavras fixaram-se, numa
postura rígida de queixo colado ao peito. A respiração tornou-se-lhe regular e
pesada. Mara chamou os escravos dele que o levaram, em braços, para o cubículo
destinado. Mara e eu ainda conversámos sobre banalidades. Nenhum de nós fez
menção a Proserpino ou a Tarcisis. Mais tarde, no meu leito
rememorei as perguntas que gostaria de ter formulado e que o meu orgulho e a
deferência amável de Mara e Proserpino frustraram. Dormi pouco e
revolto, ansioso por que o meu hóspede se fosse embora». In Mário de Carvalho, Um Deus
Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995,
Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994,
ISBN 972-21-0974-X.
Cortesia de Caminho/JDACT