Resumo: Breves anotações sobre a relação entre jornalismo e
história na obra de Eça de Queirós como jornalista.
Era aos mass media que começava a pertencer o monopólio da
história. A partir de agora, pertence-lhes. Nas nossas sociedades
contemporâneas é através deles, e só através deles, que o acontecimento nos
toca e não pode evitar-nos.
«A questão do
conhecimento histórico na cultura de um povo, com seus desdobramentos na vida
individual, tornou-se um tema recorrente na obra de importantes pensadores a
partir do século XIX. No actual mundo globalizado é impossível darmos conta da existência
humana em bases sustentáveis sem considerá-la em sua condicionalidade
histórica. Se tomarmos como premissa a moderna compreensão de que toda a actividade
humana é parte de um projecto, tudo pressupõe factores históricos: a actividade
económica, política, social, artística, científica, e até mesmo a actividade filosófica.
Mas a actividade jornalística aparentemente tem uma relação especial com o
conhecimento histórico: o jornalismo, a partir do final do século XIX, passa a
reflectir historicamente a vida dos povos em seus mais diferentes sectores de actividade.
Mas qual a relação entre a história e
o jornalismo? Como é que a história tem visto os media na sua actividade de promover a interacção do indivíduo com
os acontecimentos da vida em
sociedade?
Ora, no nosso mundo
contemporâneo, hipermoderno, já se considera o jornalista como um historiador do tempo presente. De facto,
existe uma espécie de partilha entre esses dois lugares de produção do saber,
pois se o jornalismo conta histórias do acontecimento presente, o historiador
também não cria factos, mas os descortina,
fazendo-os sair da sua invisibilidade. Entre os pensadores oitocentistas que
abordaram a problemática, e assinalando uma visão histórica da questão,
destacamos o escritor-jornalista Eça de
Queirós que, no nosso entender, nas suas crónicas para a imprensa, sentiu
alguma familiaridade entre o jornalismo e a história. Afinal, importa observar
que Eça viveu num mundo sob o forte impacto do surgimento das ciências do espírito, por oposição às ciências da natureza, mundo esse em que se destaca a influência
do pensamento de Hegel, nomeadamente no seu estudo A razão na
história, para quem a verdade está na sua história, e esta história
encontra-se em transformação perpétua. Tal indicação nos parece clara, pois se,
no primeiro número de O Distrito de Évora, Eça de Queirós
procura um conceito de jornalismo, no segundo número ele subordina seu
pensamento ao título As ciências
históricas. Em Eça, as atitudes do jornalista e do historiador são
partes de uma mesma intenção informativa. Ambos têm uma grande preocupação com
a procura da verdade.
Para ele, as ciências históricas são a base das ciências
sociais. Ou seja, para o escritor, como acaba de se tornar patente, não
se pode compreender nada da realidade, não se pode conhecer fora do âmbito da
história, porque tudo o que é real e existe tem história, é histórico. De
acordo com esse viés, tanto o saber quanto a divulgação do saber estão
subordinados à historicidade dos factos. Seria, assim, do ponto de vista da história,
que o jornalista adquire uma visão global dos acontecimentos, e procura, como numa
investigação, aqueles factos que são considerados os mais importantes na ordem causal.
Sem o sentido da historicidade dos factos, faltaria ao jornalista esta visão
global do tempo, e ele se perderia na superficialidade e no impressionismo dos
factos ditos interessantes:
- O jornalismo ensina, professa, alumia sobretudo; é ele o grande constituidor do futuro [...] A história leal, verdadeira e elevada, pela filosofia que encerra, pelos métodos políticos que esclarece, pelas tradições que destrói e que consagra, pelas individualidades cujas influências estuda e penetra, esclarece e funda a política do futuro.
Problemáticas
oitocentistas que ainda hoje permanecem actuais. Além desta
interdisciplinaridade, as fronteiras dessas duas áreas também se cruzam na
narrativa. Afinal, nos dois campos temos também um narrador, o historiador e
o jornalista, que têm empreitadas
narrativas a cumprir. Tanto o jornalista como o historiador devem reunir os
dados, seleccionar, constituir conexões e intersecções entre eles, elaborar um
enredo, apresentar soluções para decifrar uma trama e utilizar estratégias de
retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais possível
aproximada do real acontecido. Enfim, ambos trabalham sobre os factos sociais (acontecimentos)
e organizam uma memória colectiva. Sobre essa sobreposição de papéis, Cádima
vai mais longe e alerta:
- No passado, o poder tinha a palavra. Hoje, a História é o discurso, e a palavra tem o poder. No limite poder-se-ia dizer que o que resta de histórico na História é o sujeito da enunciação, o historiador, e o discurso por ele produzido. Mas se há um século atrás cabia aos historiadores a legitimação do passado, hoje é o jornalista e o campo dos media que ocupam o lugar do historiador.
Cabe, ainda, destacar o
seguinte: é verdade que o objecto de estudo do historiador está no passado, mas
o historiador vive no presente e esse presente é construído pelos jornalistas.
Hoje, não só se reconhece essa interdisciplinaridade como também se assume que
divergências entre as duas disciplinas não fazem sentido:
- Seja qual for o ponto de partida, torna-se necessário que aqueles que se preocupam com a história e a comunicação e a cultura, tema que cada dia ganha mais adeptos, levem com mais seriedade e atenção a história, e os historiadores, seja qual for o tema ou período que estudem, considerem de maneira mais cuidadosa em seus estudos a comunicação.
Enfim, para enfrentar
esta a aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o
mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que
diluam fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade jornalismo / história
ou actualidade / passado. Podemos afirmar que as duas instâncias de
conhecimento, apesar de suas diferenças, realizam abordagens e interpretações
que, quando entram em sintonia, se enriquecem na compreensão dos factos e nas repercussões
destes na sociedade. Em suma, entendemos que estas questões revelam a riqueza
de uma antiga questão. No entanto, estas preocupações podem proporcionar uma
abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objectos, e
enriquecer o campo jornalístico». In Adriana Mello Guimarães, Notas sobre Jornalismo e História em Eça de Queirós, Escola Superior de Educação de Portalegre, Universidade
de Évora, Média e Comunicação. Aprender, 2012.
Cortesia da ESEP/JDACT