Barcelona
«(…) - Guils, Guils, Guils..., pareceis doente, necessitais de ajuda.
Abraão passou-lhe um braço pelos ombros tentando erguê-lo e Guils verificou que
o ancião conservava ainda grande força nos braços. Pensou que a Providência lhe
proporcionava um inesperado, se não mesmo estranho, caminho. - Tendes de
ajudar-me a chegar a terra, meu amigo, é imprescindível que desembarque...
chegar a terra... – As suas palavras soaram confusas; custavam-lhe esforço e
dor. Tinha de confiar em Abraão. Não havia por onde escolher. - Ajudar-vos-ei,
podeis estar certo disso, Guils. - Creio que me envenenaram, Abraão, não me
resta muito tempo de vida, ajudai-me a descer a terra.
Abraão deixou Guils apoiado no castelo da popa e correu a buscar água. Depois,
abriu com rapidez a bolsa e misturou uns pós de cor dourada no líquido. - Tomai
isto, Guils, ajudar-vos-á a acalmar a dor para que possais desembarcar. Depois
levar-vos-ei para minha casa, sou médico, ireis ficar bom. Bernard Guils bebeu
o remédio devagar. Tinha de pensar, só queria pensar com clareza. O braço
apertava com força o embrulho que levava consigo, como se toda a sua energia se
concentrasse naquele gesto de protecção. Ouviu um dos tripulantes avisar da
chegada de uma barca para levar os passageiros a terra e, ajudado por Abraão,
conseguiu semi-erguer-se. - Ânimo, Guils, apoiai-vos em mim, sois capaz. - O
ancião susteve-o com força e obrigou-o a dar dois passos. Guils sentiu as
pernas entumescidas, mortas, mas seguiu em frente, para estibordo, onde os
passageiros faziam bicha para desembarcar. Frei Berenguer de Palmerola, na
primeira fila, viu como Guils se aproximava com dificuldade, quase levado no ar
pelo judeu. - Mercenários bêbados e hereges judeus - disse sem qualquer
piedade. - Que pode esperar-se de uma ralé amaldiçoada pelo próprio Deus! É
indigno que me obriguem a viajar em companhia de tal escória, tenho de escrever
ao próprio rei para que resolva uma situação tão difícil como esta.
A frei Pere de Tever, porém, não o impressionaram os comentários do
velho frade, não considerava que Guils estivesse embriagado, nem pouco mais ou
menos. Parecia doente, muito doente. Quando aquelas duas tristes figuras se
aproximaram deles, frei Pere ofereceu-se para ajudar Abraão com a pesada carga e
a sua decisão espontânea granjeou-lhe um olhar horrorizado e furibundo de frei Berenguer.
Mas o jovem frade estava realmente farto do comportamento do seu superior,
daquela fúria destruidora. Naqueles últimos dias, a raiva cega do irmão contra o
judeu tinha-o feito reflectir e jurara a si próprio que jamais, acontecesse o
que acontecesse, se havia de converter numa pessoa tão desagradável como frei Berenguer.
Descer Guils até à barca foi uma operação difícil e complicada que exigiu
a colaboração de passageiros, tripulantes e do próprio barqueiro. Até Camposines
ajudou, esquecendo por instantes a sua preciosa carga, A embarcação dirigiu-se para
a costa ao mesmo tempo que Bernard Guils desmaiava nos braços de Abraão. D'Aubert,
à proa, não conseguiu deixar de sentir a satisfação da maldade. Mercenário de
meia tigela, riu para consigo, tão orgulhoso e prepotente, bêbado perdido nos
braços de um judeu, esta é que tinha graça. Alegrava-se com a desgraça de Guils,
sentia-se realmente bem com isso e, embelezada com um pouco de imaginação,
aquela história podia transformar-se numa bela história de taberna». In
Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea,
2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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