Tempo de outro tempo
Não me ocupara ainda de ser
e já a vida
decidira da minha posse
potros de sangue
sulcaram-me a sina
e o tempo não se desperdiçou
nas pequenas fracções de mim
nem sob os meus passos
se deteve outono algum.
O mundo abrira o seu peito
os homens estreitaram-se
e segredaram-me
na cabeceira deste tempo
e à poesia pediram
que lhe fosse grata
que se mantivesse pura
e em privado se prostituísse
mas a palavra não se deteve
nem se calculou
na aritmética da conveniência.
Era já tempo
de um outro tempo
e a poesia
convocava os seus soldados
e nos fuzis da imaginação
se abriram as baionetas da verdade.
Assim
saí de mim
e me esperei
para nunca mais chegar
porque me deixei
com raízes em tudo quanto esteve perto
e perto estiveram
os homens sem nome
e os nomes esquecidos dos homens
e perto esteve a distância
da festa das vozes
de encontro ao seu canto.
E mesmo quando a solidão
me condecorou
com a medalha da ausência
as palavras que traduzira
no idioma da vida
fizeram-me nascer da multidão de mim.
Ânsia
Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma
As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo.
Poemas de Mia Couto, in ‘Poesia’
(Nov 1981 e SET 1982)
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