«(…) Lembrei-lhe que Magão foi o único autor cartaginês traduzido para
latim, por determinação do Senado, e, por isso, algum mérito havia de ter. Proserpino
lançou-se numa apurada dissertação sobre os púnicos que, como é sabido, têm a
particularidade de ser completamente destituídos de virtudes. Deixei-o
discorrer, procurando adivinhar a que vinha realmente o meu visitante. Estava
convencido de que Proserpino me procurara, tão inopinadamente, para
conseguir qualquer proveito para si. Não concebia que o próprio conceito de
desinteresse lhe fosse acessível. Calhava-me estar enganado neste particular.
Nunca mostrou visos de me pedir o que quer que fosse ou de pretender tirar uma vantagem
de mim. Também não quis ferir-me ou magoar-me. Costuma ser característica dos
espíritos inferiores servirem-se da situação de desgraça em que alguém se
encontre para exercerem a sua condescendência. Como têm em pouca conta a sua
valia própria, julgam acrescentá-la com o sofrimento que sabem extrair de
evocações, ambiguidades, ou inoportunas referências que incomodem os
interlocutores. Esse avivar da infelicidade do próximo alevanta-lhes a alma e
dá-lhes prazer, por qualquer razão estranha ao meu entendimento. Mas, de Proserpino,
no entanto, nenhuma agressão: conselhos traquejados, aliás úteis, sobre os meus
negócios, disparates sobre questões agrícolas, vitupérios contra os púnicos,
algumas citações dos gregos colhidas no ordinário da retórica, embevecimentos
fingidos com a natureza, e, assim, pelo dia fora... Sempre em estilo forense,
rebuscado, imagético e pomposo. Nunca quis lembrar-me o meu exílio nem
diminuir-me com a memória dos meus infortúnios. Conhecendo-o como conhecia, não
pude deixar de lhe ficar grato. E isto pela segunda vez na vida. - Repara, fui
dizendo, não foram os púnicos que nos invadiram desta vez. Foram os mouros da
Tingitânia. - Tudo a mesma gente: púnicos, mouros... Farinha do mesmo saco. O
lado errado do Marenostro.
À ceia, Proserpino esmerou-se no sumpto das sedas escuras e na
especiosidade dos perfumes. Era a sua maneira de nos prestar homenagem, ainda
que soubesse que costumamos ser frugais e comedidos às refeições. Mara conserva
o antigo hábito, que já sua mãe lhe transmitiu, de comer sentada, junto ao
triclínio, tão natural para ela como o costume arcaico de me tratar por amigo. À mesa vieram apenas coelhos,
cogumelos, pardelhas do rio, pão e gárum da região. Vinho, do nosso. A servir-nos,
o velho escravo que já servira a meu pai. Uma lucerna tripla, não mais. Apenas
ordenei que a cratera e os talheres fossem de prata, e que dispusessem paus de
canela numa taça, a condizer exoticamente com as sedas de Proserpino,
para que ele não tomasse a nossa simplicidade por exibição de avareza. Ao
instalar-se, fez-me uma oferta, e com a oferta um pequeno discurso, agradecendo
a hospitalidade. Num estojo de couro trazia-me uma cópia de Catão de Curiácio Materno, que me
estendeu solenemente. Agradeci, com palavras de conveniência. Mara acrescentou
umas amabilidades, depois de dar uma volta distraída aos rolos. - Nunca li, mas
calculei que te desse prazer, disse Proserpino». In Mário de Carvalho, Um Deus
Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995,
Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994,
ISBN 972-21-0974-X.
Cortesia de Caminho/JDACT