Os
irmãos da mão negra
«O
relógio dos Clérigos tinha acabado de fazer soar pausadamente as doze badaladas
da meia-noite. O tempo estava brusco e o vento, soprando da barra em frias e
cortantes rajadas, punha arrepios nos transeuntes que, levantadas as golas dos casacos
e as mãos metidas nos bolsos, seguiam a passo apressado, recolhendo a casa, sob
a ameaça de um temporal desfeito. Era em fins do Outono. As árvores do
jardim da Cordoaria, varejadas pela ventania aspérrima, despiam-se das suas últimas
folhas amarelecidas, num agitado e sussurrante protesto de espoliadas. Quem a
essa hora passasse pelo Campo dos Mártires da Pátria, veria, encostado a uma
das árvores que orlam o jardim, defrontando com a praça do Peixe, um vulto imóvel
e indiferente ao tempestuoso rugir daquela noite agreste e frigidíssima.
Parecia esperar alguém, porque, ao ouvir bater a meia-noite no relógio da
torre, levou a mão ao bolso e, aproximando-se de um dos candeeiros da
iluminação pública, consultou o seu relógio. - Aquele anda adiantado cinco
minutos, murmurou. E deu alguns passos distraidamente como para iludir a sua
impaciência. Agora, que o podemos ver ao reverbero do lampião, notaremos que é
um rapaz de 18 anos, decentemente vestido e de gentil presença, não obstante as
feições finas e delicadas quase lhe desaparecerem encobertas pela aba larga do
seu chapéu à Mazzantini. Tinha apenas dado um curto passeio no
prolongamento do jardim, quando do lado da rua do Calvário avançou a trote
rasgado um trem, que parou em frente dele. - És tu, Paulo? - disse de dentro uma voz. - Sou. - Entra
depressa, que a noite está agreste! E a pessoa que falava de dentro abriu a
portinhola, facilitando-lhe a entrada.
O
mancebo saltou de um pulo para dentro do carro, a portinhola fechou-se, e os
cavalos seguiram no seu trote largo, dobrando a rua da Restauração e subindo a
da Liberdade até ganharem a rua do Rosario.
Sigamos
aquele trem e ouçamos o diálogo que se trava dentro dele. Apenas o mancebo
entrou, a pessoa que o chamara e que era um homem de 28 a 30 anos, desceu
rapidamente as cortinas do carro e disse para o seu jovem companheiro: - Meu
amigo, como já te expliquei, isto são negócios em que se requer a maior
circunspecção e escrúpulo na observância das praxes. Hás-de consentir que te
vende os olhos. - Acaso desconfias da minha
lealdade, Jorge? - De modo algum. Mas é uma obrigação que o regulamento
me impõe, e eu não posso faltar a ela sem trair o meu dever. - Pois bem, seja! O
sujeito que ouvimos chamar Jorge tirou então do bolso um lenço e vendou com ele
os olhos do companheiro. - Hás-de dar-me a tua palavra de honra que não
tentarás arrancar a venda sem que para isso recebas ordem... - Dou. Mas se o fizesse? - Poderia isso
custar-te a vida, meu caro. - Apre! - fez o outro, sorrindo, vocês são
intransigentes! - Está nisso a nossa
força. Não violentamos ninguém a seguir-nos, damos ampla liberdade a cada um de
rejeitar a nossa associação, mas defendemos a nossa existência e mantemos o
nosso segredo. - É justo. - Assim, tu podes, até à hora de prestares o teu
juramento, reconsiderar e exigir que te restituam a liberdade. Nenhum mal te
acontecerá por isso, a tua vontade será respeitada, a tua independência
mantida. Mas não saberás dizer onde estiveste nem as pessoas com quem falaste.
- Poderei dizer que falei contigo... - gracejou o outro.
- Que
importa? Eu não sou uma associação. Comigo pode falar toda a gente... -
Falemos sério!, tornou o moço que dava pelo nome de Paulo. - Asseveras-me que os
intuitos dessa associação em que vou entrar são em tudo dignos das justas
aspirações de um homem de bem?
- Assevero-te que os irmãos da Mão-negra
compreendem e cumprem à risca o nobre dever de se auxiliarem e defenderem
mutuamente contra as prepotências sociais da nossa época. No nosso grémio desaparecem
as diferenças de gerarchia e de dinheiro. Não há pobres, porque todos somos
ricos da riqueza e da importância dos nossos irmãos. - Poderei então contar com
o auxílio da Associação na conquista da
mulher que amo? – Decerto, volveu o outro. - Tanto como amanhã qualquer
de nossos irmãos poderá contar com o teu auxílio para a realização dos seus
desejos. Isto é apenas uma associação de socorros mútuos, meu caro Paulo. A
mulher que amas será tua desde que te filies no nosso grémio. Compreendes que
toda a acção da Mão-negra se
resume em tornar felizes e ricos os seus irmãos, porque dessa riqueza e dessa
felicidade lhe advém a ela a força, o poderio, a importância». In Sá
D’Albergaria, Os Filhos do Padre Anselmo, Livraria Chardron, Empresa Literária
e Tipográfica, Lello & Irmão Editores, Porto, 1904.
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de Lello&Irmão/JDACT