Dois Sistemas em Confronto no Ocidente Peninsular
«(…) Qual a verdadeira importância de
Covadonga? Podemos dizer que Covadonga, e mesmo Poitiers, não teriam
significado muito sem a revolta berbere da década de quarenta do século VIII? Alguns
historiadores têm defendido essa posição, mas penso que não poderemos afirmar
de ciência certa que tal tivesse acontecido. É certo que esta batalha (ou
recontro, como se quiser chamar) teve lugar depois de Pelágio ter fugido de Piloña,
acossado pelas tropas muçulmanas enviadas por Munuza, senhor de Gijón, em 722. Mas o novo ataque, ainda nesse ano,
apenas nos demonstra que, para os novos senhores peninsulares, esta não era uma
simples contestação feita por um grupo de montanheses, que não mereceriam
atenção de maior. Aliás, as crónicas muçulmanas dão a entender isso mesmo.
Al-Maqqari escreve que, depois da conquista da Península pelos exércitos
islâmicos, não tinha ficado (por
conquistar) senão a rocha onde se tinha alojado o rei chamado Pelágio, com
trezentos homens. Os soldados [muçulmanos] não pararam de o atacar, até que os
seus soldados morreram de fome, não ficando mais do que trinta homens e dez
mulheres, e por fim [os muçulmanos] depreciaram-nos, dizendo: Trinta asnos selvagens,
que mal nos podrão fazer?
Não nego que as revoltas berberes, primeiro no Maghreb, estendendo-se
logo à Península, tiveram um papel fundamental no retrair do aparelho defensivo
muçulmano, nomeadamente com o abandonar, por parte das tropas berberiscas, das
cidades que constituíam o antigo limes
romano de contenção das populações montanhesas do Norte, limes este reaproveitado de seguida pelos visigodos.
NOTA: A existência deste limes
é contestada por alguns historiadores. Não é aqui o espaço para discutirmos
este problema, mas dado que a existência deste dispositivo tem alguma
importância na argumentação, importa dizer o seguinte:
A existência do limes foi
defendido, entre outros, por A. Barbero e M. Vigil apoiando-se em vários argumentos,
nomeadamente nas informações da Notitia
Dignitatum, texto do final do século IV. O argumento contra a sua
existência baseia-se no facto de as unidades aí mencionadas como estacionadas
na Hispânia pertencerem ao grupo de tropas comitatenses, e não a tropas
limitanei, sob as ordens de um comes Tingitania. As tropas encontravam-se, na
sua maior parte, aquarteladas em redor do sistema astur-cantábrico: León, Lugo,
Retortillo (Santander), entre outros locais. Argumenta-se que, se fossem tropas
de guarda de fronteira (limitanei) se
encontrariam sob o comando de um dux
ou de um comes, o que não acontecia na
Península. Ora, este raciocínio peca por aplicação mecânica do que acontecia nas
fronteiras exteriores do Império. Na realidade, nessas regiões o que Roma tinha
era, ou uma fronteira em defesa contínua, com fortes, fortins e castra, como na linha Reno-Danúbio, ou
numa série de fortificações e cidades fortificadas, como na fronteira
próximo-oriental ou africana. Aqui tratava-se de um dispositivo de contenção
interna, e não de um limes externo típico.
Ou seja, um conjunto de unidades estrategicamente dispostas em volta de um território
não ou pouco controlado, e de difícil acesso, muito embora tenha havido alguma
penetração. Sirva de exemplo a construção, embora na parte menos agreste, da
via que ligava León a Oviedo. Se a Península estivesse pacificada, se não
houvesse a necessidade de um limes
informal, para contenção dos povos astur e cantábrico, para quê o estacionamento
das tropas imperiais nessas cidades e fortificações em volta do sistema montanhoso? O
argumento de que serviriam para proteger as vias marítima e fluvial não tem o
mínimo cabimento. Contra quem?
Contra piratas? E de onde
viriam esses piratas que ameaçavam as costas e os rios peninsulares? E que rios, neste norte, tinham a possibilidade
de serem subidos por barcos?
Os vikings só iniciaram os seus raids muito mais tarde, já no século IX.
Piratas irlandeses? Até ao
século IV não temos informação de ataques de povos da Irlanda, e mesmo nesta
época, apenas contra as costas da Cornualha e de Gales. Quanto aos saxões, não
parece terem chegado mais longe do que o litus
saxonicus, a costa oriental da Britânia, e apenas a partir do século V. Na
realidade, a tão celebrada vitória das tropas romanas na Guerra Cantábrica, no
tempo de Augusto, não foi mais do que um acantonar das tribos astur-cantábricas
nos seus vales de montanha, construindo à sua volta uma espécie de limes interno.
Mas entre a batalha de Covadonga e a revolta dos berberes
peninsulares (741) passaram-se dezanove anos, e nove desde Poitiers. Durante
esse tempo, as tropas muçulmanas nada mais tinham feito, nestas paragens
montanhosas, do que reocupar o antigo sistema defensivo interno dos romanos,
colocando nele as tropas norte-africanas. Ora, se elas ali foram colocadas,
isso queria dizer duas coisas: em primeiro lugar, que havia um perigo real, que
quanto a mim não era representado pelo núcleo visigodo refugiado na cordilheira
astur-cantábrica, mas pelo combinar desses guerreiros profissionais (sobretudo
cavaleiros) com as irrequietas e belicosas tribos montanhesas; em segundo
lugar, que as tropas muçulmanas não conseguiam controlar o interior desse
espaço, terreno em que não estavam habituadas a combater, mesmo contando que na
sua constituição haveria rifenhos e berberes do Atlas». In Pedro G. Barbosa, Reconquista
Cristã, nas Origens de Portugal, Séculos IX a XII, Ésquilo, Lisboa, 2008, ISBN
978-989-8092-26-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT