A Viagem
(…) Arnaud d'Aubert viu como o capitão veneziano se afastava com
expressão trocista. Tinha conseguido aborrece-lo durante meia-hora o que o
enchia de satisfação. Aquele maldito arrogante tinha-o suportado unicamente por
causa da avultada soma paga. Sentia um enorme desprezo pelos venezianos para
quem não existia outra ideia senão a do lucro; nada os movia mais rapidamente
do que uma boa quantidade de ouro, incapazes de pensar noutra coisa com aquele
cérebro mercantil. Esteve quase a soltar uma gargalhada; aquele cretino
presunçoso divertia-o e como a viagem era suficientemente longa e entediante
tinha de aproveitar todas as ocasiões para se distrair. E conseguia. Uns dias
antes, abeirara-se do velho judeu para lhe dizer, em voz baixa, que ouvira
rumores de grandes tropelias na judiaria de Barcelona, causando-lhe grande
sobressalto. Rejubilara ao contemplar o pânico no rosto do ancião,
Tocou na perna esquerda, tentando acalmar a dor que subia, em linha
recta, até aos rins. Aquele maldito teutão de Acre desferira-lhe uma punhalada
certeira, deixando gravada na mente de D'Aubert a recordação da cara dele, Seta
muçulmana ou rixa de taberna, quem é que se importava com isso, pensou
taciturno. A lembrança do teutão punha-o de mau humor e nem sequer a imagem das
curvas suaves da adolescente árabe por quem tinham lutado, conseguiu acalmar a
dor, intensa e aguda, parecida com a mesma adaga que o trespassara. Talvez seja sinal de tempestade,
ruminou, a dor é sempre um aviso; tão
perto do porto... só faltava que uma tempestade nos fizesse ir a pique. Uma
sensação de enjoo subiu-lhe à garganta, como um alimento em más condições.
Precisava de alguém com quem se divertir. Esticou as pernas, olhando em volta, procurando
nova vítima. A tripulação parecia mais activa e atarefada que de costume e o
mar mudara de cor, o azul intenso tinha desaparecido para dar lugar a um
cinzento de chumbo. Agarrou-se aos cordames que percorriam o navio,
afastando-se da popa. Tinha visto Guils e esse não lhe parecia boa companhia.
Aquele homem não era para brincadeiras e no olhar dele adivinhavam-se sinais de
perigo indefinido, como nos olhos do alemão da taberna, cravados na sua memória
como a maldita adaga dele.
Começou a cair uma chuva fina e muito fria, e D'Aubert encaminhou-se
para o porão. Bom, de certeza que ali encontraria o comerciante catalão a
vigiar a mercadoria, a verificar cada uma das cordas, cada um dos sacos.,.
Podia ser um bom motivo de distracção! Tropeçou num membro da tripulação e
soltou uma imprecação em voz alta, atravessado pela dor que, trespassando-lhe
os rins, decidira instalar-se-lhe no cérebro, O primeiro impulso foi virar-se e
aplicar um fortíssimo pontapé no responsável do encontrão, mas estacou
imediatamente, gelado diante do olhar sarcástico do outro que parecia provocá-lo,
esperar a reacção dele. Dá-me um bom motivo
para te matar, pareciam dizer aqueles olhos. Afastou-se de um salto daquele
homem que lhe provocava aquele calafrio esquisito e penetrante e descobriu, estupefacto,
que se encontrava diante do olhar de um assassino. Retrocedeu passo a passo,
lentamente, sem perder de vista o indivíduo que lhe sorria, até chegar ao
extremo da proa, o mais longe possível. A Arnaud d'Aubert passara-lhe a vontade
de se divertir.
Barcelona
A cidade de Barcelona estava à vista e o capitão D'Amato exalou um
profundo suspiro de alívio. Os últimos dias tinham sido um verdadeiro pesadelo,
o maldito frade fizera-lhe a vida negra, exigindo-lhe que fechasse o velho
judeu no porão; o comerciante Camposines não parara de se queixar do serviço e
o mercenário zarolho há dois dias que não se mexia do catre. Começava a duvidar
do bom negócio que tudo aquilo lhe rendera e o seu maior desejo era ver-se
livre daquela ralé de passageiros e partir rumo a Veneza. Barcelona tinha
crescido por todos os lados e a poderosa muralha romana que durante séculos
havia protegido o seu perímetro era agora insuficiente para conter a maré
humana que albergava. A tendência para aproveitar os mais pequenos espaços
convertera o bairro antigo num labirinto de ruelas estreitas e escuras. A
necessidade de espaço obrigava a construir casas pegadas à antiga muralha romana,
aproveitando o muro grosso para edificar ambos os lados por meio de arcos entre
as torres». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História,
Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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