domingo, 6 de outubro de 2013

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «Mas o historiador da Crónica de D. João I não usa apenas o documento na criação dos factos, usa-o como suporte de leitura directa desses mesmos factos»

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Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Mesteiral da escrita histórica, o nosso cronista trabalhou a tempo inteiro no ofício, beneficiando do emprego paralelo de guarda-mor da Torre do Tombo e da experiência de rigor do cargo de tabelião-geral do reino. Como é, que o nosso mesteiral, mestre, e mestre maior da História portuguesa, concebeu a História? Antes de mais, o historiador tem de pugnar pela verdade dos factos. Essa verdade consiste na identidade entre os acontecimentos ocorridos e a descrição que deles se faz, identidade que pode ser bloqueada pela mentira ou pelo erro que é quando cuidamos verdade aquilo que é falso. O terreno psicológico favorável ao germinar da mentira e do erro situa-se na afeição que impulsiona o historiador a enaltecer os senhores em cuja mercê e terra vive ou a favorecer a terra onde foram nados seus avós.
Fernão Lopes marca também diferenças entre verdade e certeza. Como sabemos hoje, a certeza consiste em dizer (assentir) que há verdade ou identidade entre tal acontecimento e a narração desse acontecimento. As marcas da diferença entre verdade e certeza aparecem-nos em expressões como: maior certidom haver não podemos e ainda quando estabelece regras para confirmar a verdade e firmar a certeza: não certificar cousa salvo de muitos aprovada; não certificar cousa que não se apoie em escrituras vestidas de fé. Estas escrituras distribuem-se por um campo diversificado onde se individualizam os livros escritos sobre os acontecimentos (os testemunhos); as inscrições tumulares e monumentais; os documentos dos cartórios, designadamente do arquivo régio da Torre do Tombo de que ele era o guardador. Quanto aos livros escritos sobre os acontecimentos, Fernão Lopes pratica a sua discussão, provocando o leitor para a reflexão e a escolha da descrição que lhe parece ou nos inculca como mais verdadeira.
Fazer História não é apenas alcançar a verdade dos factos. Para ser luz da verdade e testemunho dos antigos tempos é necessário ordenar os elementos. O historiador é aquele que ordena, organiza as histórias ou descrições dos acontecimentos: a muitos que tiveram carrego de ordenar histórias; todo nosso cuidado nom abasta para ordenar a nua verdade; certo é que quaisquer histórias muito melhor se entendem e lembram se são perfeitamente e bem ordenadas que o sendo por outra maneira; mostrando cada uma cousa por ordem donde houve seu primeiro princípio... Convém reter aqui que as histórias se entendem ou usando palavras nossas que estão unidas por um fio que o entendimento pode encadear e descobrir na sua lógica. Não se trata de uma palavra que saltou para a frente no corpo do discurso. Examinadas tais opiniões, segundo um historiador escreve, não satisfazem ao razoado entendimento. Para que serve este fazer / escrever a história? Para deixar um quinhão de lembrança, ca se o escorregamento dos grandes tempos gasta a fama dos excelentes príncipes, muito mais a longa idade soterra o nome das outras pessoas dentro no monumento com eles. Mas não é vã a lembrança?
Não é apenas fumo e vaidade, usando um salomónico e clerical discurso? A lembrança serve para espicaçar os vivos a conquistarem um espaço, a usufruírem antecipadamente o prazer da futura lembrança. Mas não só. Para as acções que se abrem nas nossas mãos e nos nossos passos, a memória-história constitui um guia, no caso para os autos cavaleirosos, sem o qual caminhamos às apalpadelas: porque não há cousa tão certa nem por que se os homens melhor avisem daquilo que aos autos cavaleirosos pertence que esguardar nas obras por que os antigos floresceram ou houveram algum contrário; doutra guisa, sendo homem delas ignorante, quase cego é nas que são por vir. A massa maior dos acontecimentos narrados por Fernão Lopes foram herdados. Outros os construíram, quer testemunhas presenciais dos acontecimentos quer registadores dos relatos dessas testemunhas. Mas Fernão Lopes também construiu factos, isto é, descreveu, narrou, criou descrições dos acontecimentos servindo-se quer de testemunhos orais ou escritos em primeira ou segunda mão quer de documentos de onde extraiu, construiu narrações de acontecimentos.
Tem sido referida a abundante utilização por parte do nosso autor de documentos da chancelaria régia, muitas vezes sem aviso. Mas o historiador da Crónica de D. João I não usa apenas o documento na criação dos factos, usa-o como suporte de leitura directa desses mesmos factos. Na escolha das diferentes versões dos acontecimentos, o autor recorre ainda aos documentos para confirmar a versão verdadeira. Quais as intenções do Mestre de Avis e dos seus companheiros quando se dirigem às Cortes de Coimbra de 1385? E esta razão, segundo nos parece, ocupa mor parte da verdade que as outras. Porque na procuração que Lopo Martins, corregedor àquele tempo de Lisboa, e João Veiga e Afonso Gonçalves e Silvestre Esteves [o que lançou o bispo da torre da Sé a fundo] e Álvaro Gil com outros muitos da cidade fizeram a Pedro Afonso Farinha […] e a Martim Lourenço, seus cidadãos […], que eles e em seu nome pudessem alçar e receber por rei e senhor destes reinos o mui nobre senhor João [...] e lhe fazer preito e menagem como a seu rei e senhor. E o mesmo fizeram o concelho de Évora e os concelhos das outras vilas e cidades que levavam procuração para a eleição do Mestre-Rei. Fernão Lopes faz (escreve) aqui História como historiador dos nossos dias. E insistimos. A verdade, isto é, a identidade entre o acontecimento e a sua narração pode ser maior ou menor, pode ocupar mor ou menor parte da verdade». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT