Prefácio
«(…) Mas voltemos a tempos mais antigos. Na vida do futuro Bento XII, é
o período de Pamiers que nos interessa. Mais precisamente, é a actividade de Jacques
Fournier como animador diocesano de um formidável tribunal de Inquisição (maldita). A própria existência desse tribunal, entre 1318 e l326, não é de
modo algum um facto evidente. É verdade que o condado de Foix, em cuja parte meridional
se desenrola a acção deste estudo,
tinha sido, durante mais de cem anos, terra
prometida do erro. Os heréticos albigenses fervilhavam por lá desde o
século XIII. A Inquisição (maldita) já aí tinha
feito a sua acção, por volta de 1240-1250, após a retumbante queda de Montségur,
último bastião dos cátaros (1244). Os inquisidores tinham-se
manifestado de novo na região fuxiana
(= de Foix) por volta de 1265
e, depois, em 1272-1273. Na planície
de Pamiers, a repressão tinha então esquadrinhado todos os recantos, verificado
todas as crenças e punido todas as defecções. Mais tarde, a heresia
persiste em pulular aqui e ali: em 1295,
o papa Bonifácio VIII cria a diocese de Pamiers, que inclui o alto e o baixo
condado de Foix (sul e norte); esta criação administrativa visa
possibilitar um controlo mais cómodo do desvio. Após uma relativa calma (que
durava há um quarto de século), manifestam-se duas novas ofensivas
inquisitoriais em 1298-1300 e em 1308-1309. Em 1308, Geoffroy d'Ablis, inqúsidor de Carcassonne põe em esado de
detenção, na aldeia de Montaillou, toda a população, à excepção das crianças.
Estas investidas anti-heréticas são da responsabilidade do tribunal dominicano
de Carcassone, que não pertence à nova diocese de Pamiers nem ao tradicional
condado de Foix. Os bispos de Pamiers, por seu lado, apesar da missão que lhes
é, em princípio, atribuída, persistem durante largo tempo em manter-se sossegados;
não dizem palavra contra a heresia das suas ovelhas: o prelado Pelfort de Rabastens
(1312-1317)
está demasiado ocupado em questionar com os seus cónegos; não tem tempo de
velar pela ortodoxia de pensamento na sua diocese. Com Jacques Fournier, seu
sucessor a partir de 1317, as coisas
vão mudar: o novo bispo tira partido de uma decisão do concílio de Viena (1312).
Esta estipula que, doravante, no tribunal da Inquisição (maldita), os poderes do bispo local se unam,
tendo em vista uma proveitosa colaboração, aos do responsável dominicano, que
até então era o único a ocupar-se da actividade repressiva. Em 1318, Jacques Fournier pode, pois,
constituir o seu próprio ofício de
Inquisição (maldita): dirigi-lo-á em estreita
associação com frei Gaillard de Pomiès, designado por Jean de Beaune,
responsável pela Inquisição (maldita) de
Carcassonne. Tanto Pomiès como Beaune são dominicanos.
O novo tribunal de Pamiers mostra-se muito activo durante toda a
vigência do poder local do seu
fundador. Quando, em 1316, Jacques
Fournier for nomeado para a sede episcopal de Mirepoix, o ofício de Pamiers não desaparecerá logo. Mas, em virtude da
máxima Nada de zelo implicitamente preconizada
pelos preguiçosos continuadores do nosso bispo, a instituição repressiva perderá
o fôlego no plano local. Doravante, ela deixará em paz as populações do condado
de Foix. Tanto melhor para estas! É só durante o episcopado de Fournier que o
tribunal produz, para nós, as documentações mais palpáveis. Em que condições e
sob que direcção se processam estas
meticulosas actuações?
À cabeça do ofício está,
evidentemente, o próprio Jacques Fournier. Inacessível quer às súplicas quer às
gratificações. Hábil em fazer aparecer a verdade. Em fazer sair os cordeiros, como dizem as suas vítimas. Capaz de
distinguir em alguns minutos um herege de um católico correcto. Verdadeiro demónio inquisitorial, afirmam os
arguidos cujos corações ele sonda. Espécie de Maigret obsessivo e compulsivo,
instaura o processo, e obtém êxito, graças essencialmente à habilidade tenaz e
demoníaca que emprega nos seus interrogatórios; só bastante raramente recorre
às torturas. Maníaco do pormenot, assiste em pessoa a todas, ou quase,
as sessões do seu tribunal. Quer fazer tudo ou, pelo menos, ser ele próprio a
dirigit tudo. Recusa delegar as responsabilidades nos seus subordinados, nos
seus escrivães ou nos seus notários, como o fazem, variadíssimas vezes, os
outros inquisidores, demasiado negligentes. Todo o Registo de inquisição de Pamiers levará portanto a marca, ou a
chancela, da sua intervenção permanente. Daí, entre outras razões, a
extraordinária qualidade do documento». In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou,
village occitan de 1294 à 1324, Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e
Católicos numa aldeia francesa. 1294-1324, Edições 70, Lisboa.
Cortesia de Edições 70/JDACT