domingo, 13 de outubro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «… em 1317, o papa João XXII teria acusado os mercadores da república genovesa por roubo e venda de crianças cristãs aos infiéis. A existência de grande quantidade de escravos teria assumido este comércio nos portos do Mediterrâneo»

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O Tráfico de Escravos na Época Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) No Oriente, observa-se que, já desde os anos 800 a 1000, as expedições árabes contra a Anatólia não visavam nem a conquista nem o estabelecimento, mas sim a procura de prisioneiros destinados à escravidão. Um documento chinês de 1178, confirma a existência desse comércio desde longa data numa ilha que será, possivelmente, a de Madagáscar. Noticia a existência de uma ilha no mar onde vivem muitos selvagens, de corpos negros e cabelo encarapinhado, que eram atraídos com comida e capturados, para depois serem vendidos como escravos às nações árabes, onde atingiam preços muito elevados. O mesmo relato salienta que os navios transportavam seres humanos como carga e se compravam tanto homens como mulheres. As repúblicas italianas e os mercadores do levante hispânico intensificaram esse tráfico desde os finais do século XIII, até à primeira metade do século XV. Segundo Speck, citado por Pedro d'Azevedo, os cristãos do ocidente não sentiam qualquer repugnância por possuir escravos que não professassem o cristianismo. Por outro lado, fazia-se com frequência a venda de escravos cristãos aos infiéis. Ainda de acordo com esta fonte, em 1317, o papa João XXII teria acusado os mercadores da república genovesa por roubo e venda de crianças cristãs aos infiéis. A existência de grande quantidade de escravos, dá a ideia da importância que então teria assumido este comércio nos portos do Mediterrâneo. A sua grandiosidade, como algumas das áreas mais influentes, são referidas na descrição de Speck:

Em Veneza havia em 1368 tão grande número [de escravos] que as contendas e insubordinações delles causavam receios. Em Génova eram também numerosos; em Pisa, Florença, Lucca e Barcelona mais raros. Os tártaros, e também circassianos, russos, turcos, syrios, egypcios, em menos quantidade os bulgaros, esclavonios e gregos eram transportados aos centos para os emporios dos latinos.

Mas outras zonas foram igualmente importantes. Na foz do Don, a colónia veneziana de Tana foi um florescente centro de comércio de escravos, vendendo-os tanto para o Egipto e Síria, como para as regiões do Adriático e para a própria Veneza. A quantidade de escravos na colónia era tão grande que, por mais de uma vez, se impôs a necessidade de limitar o seu afluxo. Eram também as colónias italianas de Caffa e Tana que distribuíam na Península Hispânica os escravos provenientes do Mar Negro. A diferença de densidade escravista nas diversas regiões da península era notória. Se em Aragão, por exemplo, o elemento escravo era pouco numeroso, em Valência, Catalunha e ilhas Baleares verificava-se o contrário. Só na Catalunha, no início de quatrocentos, o seu número excedia 4 375 e nas Baleares existiam proprietários de 10, 20, 30 e, até, mesmo, 60 escravos. A rarefação da mão-de-obra no século XIV, as exigências manufactureiras da cana-de-açúcar e dos engenhos, os serviços domésticos e o hábito de alugar o trabalho dos escravos levaram à exploração do imenso reservatório centralizado no Mar Negro.
Como se acaba de ver, fazer escravos e negociar com eles, nada teve de novo nos tempos modernos. Contrariamente ao que Guilcher sustenta, na senda de outros autores, não cabe a Portugal a vergonha de ter inaugurado o tráfico de escravos. Nem sequer foram os portugueses os iniciadores da escravatura negra, como afirma H. Scherer, ou os introdutores nas colónias espanholas da América dos primeiros negros comprados em África, como declara Schoell. Não só as referências feitas anteriormente, mas também os exemplos apresentados por Charles Verlinden comprovam que estas afirmações são falsas. O que aconteceu, a partir de meados do século XV, quando os portugueses se entregaram a este negócio ao longo da costa africana, foi o encontro com sociedades verdadeiramente escravistas, tradicionalmente enraizadas nestas práticas, bem como o desvio de parte desse comércio dos navios italianos para os ibéricos. E se o número de escravos e sua importância adquiriram um tão grande valor após os Descobrimentos, atingindo uma divulgação até aí desconhecida, foi devido às necessidades do momento exigirem uma maior dinamização de mão-de-obra escrava. Ela é agora, como lhe chama Caio Prado Júnior, um recurso de oportunidade a que os países da Europa lançaram mão, a fim de explorar comercialmente os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo. Mas não é uma novidade e muito menos a contradição mental que o mesmo autor afirma, ao vê-la como um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização ocidental em que já não cabia, e onde vem contrariar todos os padrões morais e materiais estabelecidos». ». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT