O Homem de Constantinopla
«(…)
Abriu-a com brusquidão e invadiu o gabinete sem cerimónias, como se fosse
ele o verdadeiro dono da instituição. Senhor Sarkisian!, exclamou o director
com espanto, levantando os olhos dos papéis que rabiscava. Seja ... seja
bem-vindo! O director era um homem magro e nervoso, com malares muito salientes
e uma expressão mortiça no olhar gasto, que os óculos na ponta do nariz se
esforçavam por reavivar. Estava sentado à secretária a tratar da
correspondência para o patriarcado em Constantinopla. Surpreendido com a
intromissão inesperada, suspendeu a caneta no ar. O senhor já viu a nota?,
rugiu o intruso. Já viu a classificação do meu Kaloust? O director ergueu-se da
cadeira, a atenção dividida entre o seu ilustre visitante e a criança que ele
puxava pela orelha. O petiz parecia estar a ser punido, o que o deixou confuso.
Mas ... mas ele teve uma nota excelente, senhor Sarkisian! Excelente! A sombra
perturbada de uma dúvida súbita perpassou-lhe pelo olhar. Foi dezoito, não foi?
Ele não teve dezoito? Teve, sim. O rosto do homem iluminou-se com um lampejo de
alívio. Ah, bem me parecia!, bufou. Pois, foi óptimo! O olhar furibundo do seu
interlocutor voltou a desconcertá-lo; manifestamente alguma coisa estava a
escapar-lhe. Há ... há algum problema? O problema é o Shakhian ... ou melhor, o
filho do Shakhian, rosnou Vahan. Esse miúdo teve dezanove! O meu teve dezoito!
Isso significa que ele fez melhor do que o meu! Os lábios do director
curvaram-se num sorriso conciliador. Oh, senhor Sarkisian!, exclamou enquanto
abria as mãos num gesto para apaziguar o seu interlocutor. Por amor de Deus!
Dezoito, dezanove ... o que interessa isso? São excelentes notas! Excelentes! O
seu filho está de parabéns! Ele é um dos dois melhores alunos da escola! O
senhor… o senhor devia estar orgulhoso dele! É o melhor a Francês, é o melhor a
Aritmética! Esboçou uma ligeira careta. Está um pouco atrasado no Arménio por
causa da gramática, é verdade, mas isso ... enfim, não me parece grave. Vahan
Sarkisian olhou para o criado atrás dele e fez um gesto na direcção do
director. Dá-lhe! O kahveci nem hesitou. Saltou da sombra do seu patrão e
atirou-se ao director com o vigor de um cavalo de corrida, esmurrando-o na
barriga e atirando-o ao chão. Senhor Sarkisian!, implorou o director com um
gemido enquanto se encolhia aos pés da cadeira, no gesto reflexo de quem se
protege. Por favor, senhor Sarkisian!
O criado sentou-se sobre ele e pregou-lhe uma estalada de tal modo violenta
que o director embateu com a nuca no chão. Chega! À ordem do patrão, o kahveci
levantou-se e recuou para a porta, deixando o director da escola estendido
sobre a pedra fria, o cabelo desgrenhado e o rosto vermelho como uma malagueta
do bazar, os óculos atirados para um canto do gabinete, a gola desfeita. Senhor
Sarkisian, disse o homem, visivelmente atarantado, apalpando o chão em redor
num esforço vão para localizar os óculos perdidos. O que foi que fiz? Vahan
Sarkisian deu dois passos em frente e imobilizou-se diante do director, que não
se atrevia a levantar-se sem receber a devida autorização. Fica o senhor
avisado de que, no final do ano lectivo, o melhor aluno desta escola será o meu
filho!, vociferou em tom ameaçador. E não quero classificações de favor, ouviu?
Ele terá as melhores notas porque será mesmo o melhor. O melhor! Se o senhor
achar que ele precisa de melhorar, fará o que considerar necessário para
alcançar esse objectivo. Fiz-me entender?
O director balançou afirmativamente a
cabeça sem se atrever sequer a erguer os olhos. Sim, senhor. Vahan manteve-se
pregado ao chão. No final do ano quero que me entregue os testes do meu filho e
do miúdo do Shakhian, disse. Irei verificar pessoalmente que as respostas do
meu são as melhores. Ergueu o dedo, em gesto de aviso. Não se atreva a fazer
batota! A advertência concluída, deu meia volta, voltou a pegar na orelha do
filho e, puxando-a, abalou enfim do gabinete. A fama de Vahan Sarkisian era
grande no millet arménio de Trebizonda, onde a etnia cristã se afirmava como
dominante, e a sua casa gozava da merecida reputação de ser a residência mais
rica e bem decorada de toda a cidade». In José Rodrigues Santos, O Homem de
Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.
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