A Sátira nas Cantigas de Santa Maria
«(…) Nalgumas ocasiões, a sátira partia do pecador. Do pecador ou do que passava por tal. Por exemplo, ria-se um de venerarem um sapato da Virgem Maria. Se o sapato fosse verdadeiro, já devia estar podre! Pois bem: o homem caiu no chão, com um ataque, e foi a çapata que o curou. Martim Alvites, morador em Alenquer, mais fazia cantigas de escárnio do que de amor. Também ele andou mal, mas teve de se arrepender, só trovando a Santa Maria, no resto da vida. Um jogral remedador imitava tudo à perfeição. Imitou Nossa Senhora, com o Menino ao colo, e o Menino pô-lo de pescoço torcido, para aprender. Nestes casos, o riso está mais nos ouvintes. É o riso e a sátira contra os incréus. Levam castigo? Bem feito!
Temos, ainda, o mundo
ambíguo dos judeus e das judiarias. Vemos alguns deles a ferir um crucifixo. Escutamos
algumas judias a troçar doutra, que invocava a Mãe de Deus nas dores do parto.
Porém, o cómico mais burlesco vem dum bom homem a rezar a Santa Maria, no
portal da igreja. Eis senão quando, vem um grande cão, chega-se a ele e atal
o adobou / que ouv’a leixar sas prezes, com gáudio e troça de dois judeus. Claro,
queixou-se o homenzinho à Mãe de Deus, por assim troçarem dele os judeus, e
caiu-lhes o portal em cima. Mas, desta feita, nós rimos mas é da cena do cão, a
alçar a perna e a fazer o
que não devera a tão fiel cristão.
Para acabar, vamos escutar uma série de imprecações ou pragas contra os inimigos da Virgem Maria. Estamos no reino bravio da invectiva, um ramo da sátira que não é para rir: Maldito seja quen non loará / a que en si todas bondades á. É este o refrém e o maldito alterna com a bênção para quem a louvar. Vamos resumir: Maldito seja quem não disser bem daquela a quem nada falta de bom e digno! Maldito seja quem não disser bem da melhor das donas e não quiser o seu amor. No manuscrito das Cantigas de Santa Maria, temos ainda as gravuras: a mulher pelos ares, agarrada à cadeira..., a seta espetada no tabuleiro e o espanto dos que ali estão..., o homem da boca torcida a beijar a çapata maravilhosa... Mas isto são águas doutra vertente. Se um dia pudermos, delas trataremos.
Cantigas de Escárnio e Maldizer
Jean-Marie d’Heur, num estudo sobre a Arte de Trovar do Cancioneiro Colocci-Brancuti, distribui as poesias deste cancioneiro por grupos distintos e de tamanho desigual: 725 cantigas de amor; 504 cantigas de amigo; 212 cantigas de escárnio; 183 cantigas de maldizer; 32 tenções; e 23 cantigas sob o título de Varia.
O Prof. M. Rodrigues Lapa alargou a sua análise a vários cancioneiros, limitando-se às cantigas de escárnio e maldizer, a fim de reunir a vasta colectânea das Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, com nada menos de 431 poesias deste género, na segunda edição. Porém, ao contrário de Jean-Marie d’Heur, não isola as tenções, aqui, num todo à parte. Outro era o seu fim e sabia que algumas delas são temperamentalmente iguais a outras cantigas de escárnio e maldizer, só que vêm estruturadas em diálogo mais ou menos agressivo, à maneira de certas cantigas ao desafio dos nossos dias, nas feiras e arraiais do Norte. Carolina Michaëlis Vasconcelos, em quinze artigos modestamente intitulados Randglossen zum altportugiesischen Liederbuch, publicados entre 1896 e 1905, estudou muitas cantigas de escárnio e maldizer, por vezes obscenas e grosseiras. Nestas Notas à margem do antigo Cancioneiro Português interpreta, sobretudo, as cantigas satíricas, recorrendo às fontes históricas para esclarecer certos pontos dessas poesias e dos seus autores. E, ao publicar em Halle o Cancioneiro da Ajuda, aponta os nomes dos poetas satíricos mais antigos: Joan Soares Paiva, Fernan Rodrigues Calheiros, Fernan Paes Talamancos e Martin Soárez, sendo este o fidalgo-trovador mais velho de quantos conhecemos, diz ela. E ajunta, pouco depois: foi na côrte de Alfonso X que se geraram as principaes cantigas de escarnho e maldizer, algumas das quaes se guardavam de certo bem fechadas, e foram a custo arrancadas aos esconderijos.
Ao tratar da época medieval, em Lições de Literatura Portuguesa, Rodrigues Lapa dedica páginas sugestivas, não só em torno das cantigas de escárnio e maldizer, em geral, mas também em torno das suas relações com a Provença e alguns temas principais que as agrupam. Mais perto dos nossos dias, Manuel Aguiar oferece ao leitor uma galeria de caricaturas: O nobre ou ricome; Papa, bispos e clérigos; O trovador; A soldadeira; Os supersticiosos; Os maus juízes; Os perdidos de amor; O mentiroso; Os defeitos físicos; Os tipos miúdos.
Enfim, dentre os estrangeiros, isolamos Kenneth R. Scholberg e a sua
distribuição das cantigas de escárnio e maldizer. Como agrupar toda a bicharia
da Arca de Noé? Em muitos ou poucos grupos? Num livro breve, temos de optar por
uma coisa e, quando muito, insinuar o que fica na sombra, e é mais do que
pensamos. Manuel Aguiar, em nota final, aponta uma enorme litania de tipos
caricaturais, que um dia poderão sair do limbo em que os deixou: o esfomeado, o
miserável, o pedinchão, o parasita, o medroso, o traidor, o fanfarrão, o pretensioso,
o clérigo comilão e metido em brigas, as freiras mundanas, o coxo, o careca, a
mulher gorducha, a mulher feia, a coscuvilheira, o tímido diante da sua dama, o
plagiador de versos, o mau trovador, o supersticioso, o agoirento, o astrólogo,
o mau médico, o juíz peitável, o amoroso lamechas, o interesseiro em casar
rico, o avarento, o caloteiro, etc. Tudo, porém, tem os seus limites, e é bom
que os vindouros tenham que fazer» In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões,
1986.
Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,