«(…) Não fosse o vestuário, a seda, o brocado, as telas de ouro, Ana diria que Rui Dias havia ressuscitado. Percebia agora a razão por que seu cunhado sempre tivera o cuidado minucioso de usar roupas não costumadas e sobretudo, quando casou com a senhora de Limi, vestimentas à maneira da Flandres. Queria estremar-se da figura real, quanto mais não fosse para calar as impertinentes chufas dos seus conhecidos, que chegavam ao ponto de lhe chamarem, na galhofa, el-rei Sabão.
A segunda vez que vira o rei fora
num serão na corte. Música de charamelas, sacabuxas, cornetas, harpas, tamboris
e rabecas tangiam cada um por seu giro músicos mandados vir de fora do reino, além
de mouriscos que cantavam ao som de alaúdes e pandeiros. Dançavam damas e galantes,
bailavam donzelas e moços fidalgos. El-rei vinha entrando, abriam alas damas e senhores,
detinha-se às vezes a falar com uns e outros. Pára diante dela, depois de
escutar o que ao ouvido lhe segredava o secretário. Conheço muito bem a tua casa
em Santarém, disse, e ainda me lembro de teu pai, teria eu uns dez anos. Muita honra,
senhor, balbuciou Ana muito corada. Quando el-rei se afastou e ela sossegou da emoção,
pôde apreciar, assim de perto, a mais ínfima semelhança do rei com o cunhado, as
mesmas feições, a mesma estatura, tamanho de braços e pernas, cor do cabelo e
dos olhos, o sorriso, a não ser… não, aquela voz clara e bem entoada não era a voz
de Rui Dias. Mas havia uma outra coisa em que eram parecidos: ambos haviam casado
uma porção de vezes e, se bem que o cunhado fosse ligeiramente mais velho que el-rei,
casamentos e nascimento de filhos seguiram quase a par.
Magna caterva de filhos tivera
o rei Emanuel. Depois de subir ao trono, propôs aos reis da vizinha Castela
casar com a princesa Isabel. Aplaudiram-no os conselheiros, aceitaram com júbilo
Fernando e Isabel, pais da princesa. Continuação da política do sábio rei anterior
de consolidar a paz entre os dois povos. Mas não faltaram vozes que acrescentavam
de outro jeito a resolução real: Então não era de esperar? Já vos não lembrais dos
olhos que em Évora ele deitava à princesa quando ela veio para Portugal a casar
com o príncipe Afonso que Deus haja? Amor que vinha de trás, de menino e moço, aquando
das terçarias». In Fernando Campos, A
Sala das Perguntas, Difel 82, 1998, ISBN 972-290-437-X.
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