sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro»

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O Breviário

«Outra visita temos, curiosa e invulgar. Naquelas matas espessadas que se vêem nos montes, moram nos cerros agrestes e nas brenhas densas, em grutas e covas, homens bárbaros e bestiais, tidos comummente na ilha como selvagens, pois que vivem apartados do convívio humano, jamais descem aos povoados e levam um teor de vida primitivo. Sustentam-se da caça e pelejam muitas vezes com fustas e galeotes de mouros que por ali ordinariamente acodem a roubar, de Rodes, de Escarpanto e de outros lugares vizinhos da ilha. Mostram-se contudo afáveis e dados com os venezianos, quanto ao que entendi, ou por serem estes os senhores da terra, ou porque deles necessitam quando os vêem aportar àquelas partes, ou porque lhes têm o respeito que é costume ter-se a naus tão artilhadas como as de Veneza. Nos dias que ali estivemos presenciei o cuidado e resguardo com que sai a terra a gente do serviço da nau, que quando vai buscar lenha ou água fá-lo sempre acompanhada de arcabuzeiros.

Três destes homens vêm a bordo a vender carne montesinha. Trajam samarrões sem mangas, feitos de couro cru de veado. Debaixo, uma camisa muito áspera e grosseira. Não trazem bragas, mas umas botas de pele crua de vaca, tão altas que as atacam com uma tira de couro junto da cinta. Na cabeça, de cabelos tão compridos que lhes chegam a meio das espáduas, uma espécie de carapução também de couro cru, que juntamente com lhes servir para os cobrir lhes serve ainda de arma defensiva em tempo de necessidade. Usam arco e setas, que nunca largam quando saem. Trazem perdizes, cabritos, leitões, veados. Vendem tudo tão barato que quatro perdizes custam um marcelo, que é como o nosso real de prata, e pelo mesmo preço vendem os cabritos e os leitões.

Entre estes homens vem um extremamente comunicativo e faceto, de nome Argirópolos, que com todos quer zombar e gracejar, faz todo o possível por dar fé de quanto há na nau, andando de coberta em coberta, abaixo e a cima, e, ainda que alguns o convidam a que pouse o arco e as setas, ninguém o consegue. Passando junto de mim atenta no meu breviário que, por suas capas de carneira castanha, cantos de prata lavrada e letras gravadas a ouro, oferta do superior de Évora ou, como eu desconfiava, de alguém por seu intermédio, aquando da minha ordenação, é diferente dos de todos os outros frades. Faz menção de o ter nas mãos, no que eu consinto, e profere algumas palavras que me parecem uma pergunta. Embora aprecie o espectáculo da sua viveza e graça, não o entendo. Não sei o grego falado. Mas entendem-no muitos passageiros gregos e os oficiais da nau, quase todos gregos. Esta falta têm as naus venezianas: o trazerem pilotos gregos, recrutados nas muitas terras e ilhas marítimas gregas de que têm o senhorio e cujos habitantes, numa tradição que vem dos tempos antigos, se dedicam à arte de navegar.

Que diz ele?, pergunto a um oficial de bordo que está perto e se chama Constantino. Perguntou-vos o nome, responde. Pantaleone!, exclamo eu em italiano, por me parecer mais sonoro e apreensível aos ouvidos de um bárbaro. Pantaleone!, repete ele maravilhado, rebolando os olhos risonhos e despejando uma algaravia que não entendo mas que Constantino, fazendo de língua, se apressa a traduzir: Diz que Pantaleone é nome grego e que, se vós sois todo leão, sois valente como um leão e ele gosta dos homens valentes como leões. Todos se riem muito com a laracha e eu também. Ele entretanto já me andava arremedando, passeando devagar para trás e para diante, com o breviário aberto, fingindo lê-lo, mexendo os lábios, e deitando fora muitos perdigotos. Enquanto a gargalhada é geral, chega-se a mim com um ar muito composto e entrega-me o breviário dizendo: Pantaleone! Como é que de repente me vem à ideia aquela expressão latina cretenses mendaces, os Cretenses são mentirosos? Quem me havia dito que esta gente é muito doméstica, amigável e de boa conversação no exterior, mas no seu Intimo malíssima, mentirosa e traiçoeira?...

Não se esqueceram os caloiros de no domingo seguinte nos virem buscar, pela manhã, para nos levarem consigo ao seu mosteiro. Acatamento amistoso, refeição no nosso camarote. Depois de comermos juntaram-se a nós quatro fidalgos cipriotas e cinco passageiros gregos e todos juntos, com meu companheiro frei Zedilho, pedimos licença ao patrão para irmos com os caloiros ver o mosteiro. Signor Nicoló concedeu-no-la com muita cortesia. Também de boa vontade ia connosco, se o porto estivesse seguro de corsários». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,