26 de Março de 2021
«Acordou sem
idade. Lembrou-se do corpo, mas não mexeu um dedo. Sentiu a roupa da cama,
indistinta daquela hora da madrugada, mas não abriu os olhos. Coberto pelo
agasalho, preferia a escuridão à penumbra ou, pior ainda, aos números modernos
e implicantes do despertador electrónico. As pálpebras eram-lhe leves, da mesma
maneira que era leve o mundo naquele instante, o silêncio lá fora sobre a vila,
o ar limpo que inspirava e que o desimpedia por dentro. Não mexeu um dedo ou
qualquer músculo, tinha certezas. Sabia que envelhecer é acumular dores:
começam por doer certos gestos, certos jeitos, virar-se de repente, agachar-se
para atar o sapato; depois, doem as acções mais comuns, sentar-se, levantar-se,
caminhar; até que, por fim, dói tudo, dói estar, dói ser.
Essas eram as dores que não
sentia ali. Estava como na mocidade ou, pelo menos, estava como quando
desconhecia determinadas queixas. Deitado, louvava as serventias da ignorância
e, sem querer entregar-se à excessiva ingenuidade, quase acreditou que podia
ter rejuvenescido de repente. Era uma hipótese, quem sabe, se calhar. Já tinha
sido testemunha de fenómenos muito mais imprevistos. Se lhe fosse oferecido
esse negócio, estava pronto a aceitá-lo de imediato, embora jamais se mostrasse
demasiado ansioso, há muito que conhecia as regras das transacções comerciais.
Em todo o caso, à cautela, permanecia imóvel, mantinha a posição.
Lembrou-se dos óculos do Marcello
Caetano. E baralhou-se, passou um segundo ou o que pareceu ser um segundo.
Lembrou-se do cheiro avinagrado da massa das farinheiras e quis continuar nessa
lembrança, prosseguiu, a massa branca que repousava em dois alguidares, grãos
de gordura a brilharem, a mãe e duas mulheres a instalarem-se em bancos, de
roda do primeiro alguidar e, com unhas cortadas à tesoura, a encherem as
tripas, e a massa das farinheiras nas costas das mãos, quase a chegar aos
pulsos, enfiavam-na com os dedos num pequeno funil de alumínio e, através desse
instrumento, nas tripas, que não enchiam completamente antes de amarrar com o
atilho, e a mãe a levantar o rosto, a dar por ele, seu filho, a chamá-lo, a
chamá-lo de novo no interior dessa lembrança. Vinha de longe a voz da mãe e, no
entanto, custava-lhe diferenciá-la de si próprio. Onde existia a voz da mãe naquele
instante? E repetiu a lembrança da mãe a chamá-lo, o cheiro avinagrado da massa
das farinheiras.
Era um homem deitado. Como se, ao
perder a idade, tivesse perdido uma parte do nome. Desfrutava de uma
simplicidade que esquecera durante longas temporadas. Como se tivesse sido
aliviado de uma carga invisível, talvez o olhar que as multidões lhe dirigiam
quando chegava, talvez o peso do respeito, senhor comendador, senhor
comendador, era um homem deitado. Ou seja, mantinha o nome, sempre recusou ser anónimo,
levava o nome entranhado, mas tinha perdido o peso que o tempo lhe
acrescentara. Mantinha a história mas, incrivelmente, como um mistério daquela
hora da madrugada, o peso que lhe sobrecarregava os ossos tinha sido levantado.
Aproveitou essa liberdade, sorriu
por dentro. Essencial, reduzido ao ser ou, com mais rigor, ampliado nele,
seguiu a reverberação imaterial que ocupava e estendeu a sua presença à casa,
silêncio formal, cerimonioso, pontilhado por estalidos aleatórios na distância,
madeiras a queixarem-se. Deitado na cama, na vasta escuridão dos olhos fechados,
avançou por corredores, entrou em divisões que, apesar da passagem dos anos,
continuavam a parecer-lhe novas. Recordou o momento em que foram projectadas e
edificadas; com a mesma facilidade, poderia ter recordado o tempo em que apenas
as imaginava.
Nunca quis acostumar-se à posse,
deixar de apreciar, perder o gosto, era aquela uma casa boa. E atravessou as
paredes da casa, muros, portas, portões, ou atravessou uma ideia com a mesma
grossura, e lançou o sentido nas ruas da vila. Conhecia todas as ruas, tanto as
mais antigas, distorcidas por séculos, calcorreadas por gente e gente, sombras sacrificadas,
como as mais recentes, ainda cheirosas de cimento. Se fosse preciso, não lhe
custaria achar caminho em Campo Maior na noite mais preta, sem lua, sem
iluminação pública, de olhos fechados.
Em tempos, pousara a palma da mão
bem aberta na cal, sentira-lhe as múltiplas camadas. Sabia de episódios em
todos os recantos da vila, presenciara uma parte deles, salpicado por muita
realidade, e vivera uma porção ainda mais extensa desse rol. E sorria com força
nova ao reparar no fresco de algumas ruas, aragem que bulia entre as fachadas, erguidas
de um lado e de outro, portas abertas ou apenas encostadas, o trinco solto,
roupas estendidas de gente que conhecia bem, vozes a tratarem do jantar,
braseiras espalhadas nos fins de tarde de Março, a avivar as brasas para o
serão. A que ano pertenceriam esses marços?, esta era a pergunta que não
colocava, preferia analisar o aroma das folhas de laranjeira, vindo de algum
quintal, de alguma horta, já talvez a caminho do campo e, dessa maneira,
escutava o som das botas a pisarem a terra, ervas de Março ou, mais
provavelmente, ervas sem mês e sem ano». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo,
Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,