quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O Segredo de Espinosa. José Rodrigues dos Santos. «Sei lá. Olhou para o adulto que os acompanhava. Quem é aquele senhor, Pai? É o Uriel da Costa. Porque está toda a gente a olhar para ele?»

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Prólogo

«Os olhos castanho-escuros brilhantes do menino de oito anos estavam colados ao pano de seda vermelha e dourada que no hechal, o santuário da arca feito de madeira com duas portinholas, cobria os pergaminhos onde se inscrevia a Tora. Era como se HaShem, Ele próprio, o Nome, Deus bendito, omnipotente e omnipresente, Shaddai Todo-Poderoso, Adonai, Elohim ou qualquer outro dos Seus mil nomes, a1i estivesse à espera que O destapassem para que sobre todos lançasse o Seu olhar carregado de infinito. Misericórdia, justiça, fúria, compaixão, majestade, poder, amor, vida e morte. Ele era tudo o que havia. Tudo. O incomensurável.

O rebuliço próprio da sinagoga, entre os yehidim conhecida por esnoga, denunciava uma descontracção feita de conversas cruzadas e gargalhadas frequentes. Os correctores trocavam informações úteis para a sua actividade na bolsa, os comerciantes discutiam quando chegariam os últimos carregamentos de pau-brasil do Recife e de sal de Setúbal, e se haveria problemas com os espanhóis. Outros membros da congregação comentavam o descaramento dos tudescos em quererem vender nos seus talhos comida kosher aos portugueses, enquanto um punhado se ria com uma piada fresca que acabara de chegar de Lisboa ou de Sevilha. Os homens tinham panos brancos nos chapéus a cair-lhes sobre os ombros, os tallitot, e todos se sentavam nos seus lugares previamente marcados. Não havia nenhum que não tivesse nas mãos um Tanach, a Bíblia judaica; algumas em hebraico, a maioria em português.

O olhar do pequeno Bento desviou-se para a galeria onde se encontravam as mulheres, as cabeças cobertas por véus, muitas acompanhadas pelas filhas. Até dois anos antes tinha visto a mãe sempre ali sentada, silenciosa e atenta, a tossir ocasionalmente, mas justamente por causa dessa maldita tosse Ana Débora já não estava neste mundo. Em vez dela, viu duas meninas da sua idade sorrirem-lhe. Endireitou-se logo. Diziam-lhe por vezes que era um rapazinho de feições bonitas, o que pelos vistos atraía tantos sorrisos e olhares das meninas, mas, tímido como era, não sabia como lidar com tais atenções.

O burburinho parou bruscamente. De tão inusitado, o silêncio súbito arrancou Bento das suas deambulações pela esnoga. Os rostos de todos os congregantes voltaram-se em vagas sucessivas para a porta da rua e o menino, sentado na nave com a família, imitou-os.

Contra a luz pálida do Sol que jorrava sobre a entrada recortava-se o vulto de um homem de cabelos grisalhos revoltos, os ombros descaídos, imóvel e de cabeça baixa; dir-se-ia que tinha medo de entrar. Os olhares dos yehidim mantinham-se presos no recém-chegado, sem o convidarem mas também sem o rejeitarem; estavam simplesmente na expectativa de ver o que ele faria. Atrever-se-ia a avançar ou daria meia-volta e escapulir-se-ia?

Sentindo a súbita tensão que se instalara no santuário, Bento virou-se para o lado. Quem é?, os seus dois irmãos, Isaac um ano mais velho e Gabriel dois anos mais novo, encolheram os ombros com indiferença. Sei lá. Olhou para o adulto que os acompanhava. Quem é aquele senhor, Pai? É o Uriel da Costa. Porque está toda a gente a olhar para ele? Impacientando-se, o pai colou o indicador aos lábios. Chiu!

O pequeno calou-se e voltou a olhar para o recém-chegado. Ainda plantado no meio da entrada, Uriel da Costa respirou fundo, como se ganhasse coragem para fazer o que viera ali fazer. Recomeçou a caminhar, o corpo curvado pela derrota, os olhos intimidados no chão, internando-se na sinagoga pelo corredor central ladeado de congregantes que o observavam fixamente.

Chegou diante da bimah, a plataforma de madeira situada no centro do santuário onde habitualmente se faziam as leituras. Após uma nova hesitação, subiu-a com passos lentos e pesados, como um condenado a encaminhar-se para o cadafalso. A bimah estava deserta e os olhos de todos os yehidim encontravam-se centrados nele como se fosse o chacham de serviço. Voltando-se para a multidão, Uriel retirou do interior do casaco o papel que o chacham Saullevi Morteira, o rabino chefe, havia previamente redigido com as palavras adequadas para a ocasião. Desdobrou-o. As mãos tiritavam de nervosismo e o papel tremelicava sem cessar. Engoliu em seco ao pousar os olhos nas primeiras linhas do texto. Afinou a garganta». In José Rodrigues dos Santos, O Segredo de Espinosa, 2022, Grupo Planeta, 2023, ISBN 978-989-777-666-3.

 Cortesia de GrupoPlaneta/JDACT

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