«Ó Misericordioso, insistiu um terceiro. E de repente, finalizada a oração cristã, voltou a impôr-se a áspera voz do sacerdote. Seu nome seja louvado, pôde-se ouvir naquele dia de uma das últimas fileiras. A maioria dos mouriscos permaneceu imóvel, rígida e firme; alguns arrostavam o olhar do beneficiado Salvador, mas eram majoritários os que escondiam o seu; quem havia ousado louvar o nome de Alá? O beneficiado abriu caminho aos empurrões entre as fileiras, mas não pôde assinalar o sacrílego. No meio da missa, com o padre Martín sentado e vigilante, o sacristão e o beneficiado, um com o livro e o outro com um cesto, esperavam para receber os óbolos dos presentes: moedas de blanca, pão, ovos, linho...
Somente os pobres estavam isentos
de fazer donativos;no caso dos mais endinheirados, não fazê-los por três domingos
implicava receber a correspondente multa. Andrés anotava detalhadamente quem e
o que doava. Quando soou a de morrer, como chamavam a sineta que
anunciava a consagração, os mouriscos se ajoelharam de má vontade entre as
demonstrações de piedade dos cristãos-velhos. A de morrer soou no momento
em que o sacerdote, de costas para os fiéis, elevava a hóstia; voltou a se
fazer ouvir quando, também de costas, ergueu o cálice. O sacerdote se preparava
para dizer as palavras sacramentais quando, de repente, zangado com os
murmúrios que agitavam a igreja, se virou para os fiéis com semblante furioso. Seus
cães!, gritou. A imprecação salpicou de saliva o sagrado vaso. Que são esses
murmúrios? Calem-se, hereges! Ajoelhem-se como devido para receber a Cristo, o
único Deus!
Você! Seu indicador apontou para
um velho da terceira fileira. Levante-se! Não está idolatrando o seu falso
Deus. Olhem! Levantem os olhos quando lhes for oferecido o Santíssimo
Sacramento!
Seu olhar fulminou outros dois
mouriscos antes de continuar. Depois, homens e mulheres foram em silêncio comer
a torta. Muitos deles tentariam manter a pasta de trigo na boca
ensalivada até poder cuspi-la em casa; todos os mouriscos, sem excepção, fariam
gargarejos para livrar-se de seus restos.
As pessoas deixaram a igreja após
lhe terem benzido com a paz; uns, os cristãos, a receberam com devoção: outros,
a grande maioria, zombavam fazendo o sinal da cruz ao contrário, afirmando em
silêncio a unicidade de Deus e escarnecendo da Trindade, que tinham de invocar ao
fazer o sinal da cruz. Os mouriscos se apressaram a voltar para casa para
cuspir a torta. Os poucos cristãos do povoado se aglomeraram às portas da
igreja para conversar, alheios aos insultos que seus filhos gritavam contra a
velha, que por fim havia caído da escada e estava no chão, encolhida e
intumescida, com os lábios azulados, respirando com dificuldade. No interior do
templo, o padre e seus ajudantes prolongaram o castigo do penitente, e não
cessaram de recriminá-lo por suas culpas enquanto recolhiam os objectos de
culto e os levavam do altar para a sacristia.
Os mouriscos se lançaram
à rebelião, é verdade, mas são os cristãos-velhos que os levam ao desespero,
com sua arrogância, suas defraudações e a insolência com que se apoderam de
suas mulheres. Os próprios sacerdotes se comportam do mesmo modo. Como toda uma
aldeia mourisca se tinha queixado diante do arcebispo de seu pastor, mandou-se
averiguar o motivo da queixa. Que o levem daqui, pediam os paroquianos... senão
que o casem, pois todos os nossos filhos nascem com olhos tão azuis como os
dele.
Francés de Álava,
embaixador da Espanha na França, a Felipe II, 1568: Juviles era o lugar
principal de uma taa composta por uma vintena de aldeias distribuídas
pelos escabrosos contrafortes de Sierra Nevada. De todas as suas terras, um
quarto dos marjales era
de regadio e o restante de sequeiro. Cultivava-se trigo e cevada; contava com
mais de quatro mil marjales de vinha, oliveiras, figueiras, castanheiros
e nogueiras, mas sobretudo amoreiras, o alimento dos bichos-da-seda, a maior
fonte de riqueza da região, ainda que a de Juviles tampouco alcançasse o prestígio
de que gozava a seda de outras taas das Alpujarras.
Naquelas alturas,
mais de mil varas acima do nível do mar, os mouriscos, sofridos e laboriosos,
cultivavam até o pedaço de terra mais abrupto que pudesse proporcionar algo de
seara. As encostas da montanha, ali onde não assomava a rocha, escalonavam-se
através de pequenos terraços encravados nos lugares mais recônditos. Naquele
dia, com o sol já a pino, voltava a Juviles, procedente de um daqueles terraços,
o jovem Hernando Ruiz, um rapazinho de catorze anos de idade, de cabelo
castanho-escuro apesar da pele bastante mais clara que a morena verde-escura de
seus congéneres. Suas feições, contudo, eram similares às dos demais mouriscos
de sobrancelhas espessas, apesar de que nelas se destacavam uns grandes olhos
azuis». In
Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, 2010, Bertrand Editorial, Grandes Romances,
2010, ISBN 978-972-252-226-7.
Cortesia de Bertrand E/JDACT
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