História
«E
interrogamo-nos se estamos a viver o declínio daquela Europa que aqui tem as
suas origens, o fim de um ciclo de civilização, e também o dos Estados Unidos
da América, filhos dessa mesma civilização, que, depois de terem dominado sem
contestação no século passado, mostram sinais de cansaço, enquanto alguns
países asiáticos parecem proceder prepotentemente à sua entrada no palco de uma
história vista com olhos europeus. Uma recolocação do continente no quadro
geopolítico mundial parece inevitável. É também evidente a crise de identidade
dos europeus no momento em que as deslocações de país para país e de continente
para continente já não são apenas factos individuais, mas são tão consistentes
que nos induzem a falar de migrações iminentes ou já em curso; e em que se vão
formando grupos que parecem ilhas com coesão interior e limites bem desenhados,
mergulhadas em ambientes que se pretendem homogéneos ou que se descobrem como
tais a despeito de todos os discursos sobre tolerância, multiculturalismo e
interculturalismo. Ao mesmo tempo, entrevê-se a crise dos Estados nacionais, os
seus primeiros núcleos localizam-se exactamente nesta parte da Idade Média,
assediados pelo surgir e ressurgir de regionalismos e localismos, pela
consolidação de organismos multinacionais e supranacionais, por uma economia
globalizada, por meios de comunicação à escala mundial, rápidos ou
instantâneos, que se não limitam a pôr em contacto áreas e sistemas de vida anteriormente
isolados ou não imediatamente contíguos, mas implicam novas reflexões sobre a natureza,
a licitude e a conveniência desses sistemas de vida e sobre sua recíproca compatibilidade.
Não
menos influentes, embora à primeira vista menos estreitamente ligados ao plano histórico,
são os avanços da ciência e da técnica que põem em crise alguns valores e comportamentos
arraigados, como os bem conhecidos, mas que se tornaram problemáticos, da fecundação
artificial ou relacionados com a morte e, principalmente, o próprio conceito de
homem, a fronteira entre o humano e o não humano, entre umas máquinas cada vez
mais inteligentes e uns homens recheados de componentes artificiais. Fala-se do
regresso à natureza e à religião, à busca de pontos de referência seguros,
postos fora do tempo.
Por
um lado, procura-se esquecer que a natureza não pode ser separada da sua
história, que não é possível considerar uma natureza primigénia e inalterada,
só depois comprometida pela intervenção humana; e que nem a Idade Média, com os
seus bosques habitados por animais selvagens, os seus mares sem embarcações, a
raridade dos povoamentos e do tráfego e os seus pretensos comportamentos
primordiais, pode ser um fundo imóvel capaz de nos dar a medida da mudança
verificada até à idade contemporânea, como pretende certo medievalismo amaneirado.
Por
outro lado, põe-se em evidência o papel da religião na constituição da
identidade europeia, na formação da Christiana
communitas, Christiana societas, Christiana respublica, ou Christianitas. E
discute-se se a influência do cristianismo foi ou não fundamental, se deve ser
remetida para o silêncio ou rejeitada como perigosa para a laicidade da vida
pública e dos Estados, recentemente conquistada a partir do século XIX , ou se
foi tão exclusiva que deva ser mencionada na constituição europeia, de
preferência a outras características distintivas, como por exemplo a precoce
formação de uma mentalidade capitalista ou de um espírito de aventura e de
conquista, ou ainda de uma vontade de transformação da natureza e da realidade
circundante, cujo desabrochar também poderia ser correctamente atribuído à Idade
Média.
Neste
tempo, que muitos dizem de pós-modernidade e pós-secularidade, mas cheio de incerteza,
e, exactamente por isso, de subtil análise da história passada e do presente
com base numa pluralidade de pontos de vista centrados em objectos de estudo
anteriormente negligenciados, de relativismo e de medo do próprio relativismo,
também a história perde a linearidade que lhe era atribuída pela visão
eurocêntrica de um progresso sem fim. Parece agora o resultado, mais ou menos
fortuito, da interseção de acontecimentos só em parte determinados e regulados
por uma vontade humana consciente, ainda que em pequena parte, ou melhor,
fragmentados em mil vontades diferentes e frequentemente contraditórias, de
tensões e contratações, de êxitos parciais e de malogros.
A
avaliação da Idade Média, considerada a partir dos humanistas como uma idade intermediária
privada de valor próprio, uma época de barbárie, violência, miséria e anarquia,
encravada entre o esplendor da idade clássica e a recuperação renascente dessa idade,
não pode deixar de ressentir-se de tais orientações. O que ainda na idade do
Iluminismo fora rejeitado em bloco, como o tempo do nascimento da feudalidade,
da separação da sociedade em estratos distintos e dotados de regras e direitos próprios,
destinados a percorrer um caminho pré-indicado e a deslocar para o Além sonhos
e esperanças de resgate, em nome do descobrimento de uma razão universal, de
uma natureza racional, de uma humanidade libertada de origens constituídas por
superstições e abusos, e que o século seguinte revalorizara como um tempo de
redescobrimento da espiritualidade, de fundação de uma unidade religiosa
cristã, de formação das independências nacionais e comunais, parece hoje
decomposto em segmentos que não encontraram uma sistematização unívoca.
Hipóteses para uma periodização da
Idade Média
A data geralmente indicada como início da Idade Média é,
como se sabe, o ano de 476, da deposição
do imperador Rómulo Augústulo (459-476, imperador desde 475), considerada como
o fim do Império Romano do Ocidente; mas não falta quem indique a entrada dos lombardos
em Itália, em 567 ou 568, ou a chegada dos francos, em 774, e há também quem proponha
que o período decorrido até o século VI seja atribuído à Antiguidade tardia e
que só a partir do século seguinte se deve falar de alta Idade Média. É certo
que a presença islâmica no Mediterrâneo a partir dos séculos VII e VIII
constitui uma cesura importante, embora a tese de Henri Pirenne (1862-1935),
segundo a qual este facto determinou o fim do mundo antigo, tenha sofrido algum
redimensionamento. Igualmente importante parece a nova ordem imposta no centro
do continente por Carlos Magno (742-814, rei desde 768, imperador desde 800).
Até
o ano 1000, demoradamente carregado de significados apocalípticos, parece ter
perdido, em parte, a sua carga periodizadora, principalmente para quem situa
os séculos centrais da Idade Média entre o IX e o XII. De qualquer maneira,
as passagens do século V para o VI e do século X para o XI continuam a
representar viragens significativas na história europeia, às quais se optou por
atender. A própria tendência para a multiplicação de referências e de
acontecimentos que possam ser julgados fundadores, bem como a sua variedade
consoante a zona geográfica e o ângulo de visão sob o qual são examinados, não
só possibilita periodizações diferentes como salienta, além das transformações
do mundo antigo, o fundamental contributo dos povos bárbaros, dos bizantinos,
subtraídos à pretensa imobilidade da sua história, dos islâmicos, que hoje, por
motivos óbvios, atraem particularmente as atenções, ou de minorias como a dos
judeus e dos heréticos, na construção da identidade e das vicissitudes
europeias». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos,
Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,