NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu,
Domingo de Páscoa, Abril de 1126
«O que coçava muito a cabeça
voltou a fazê-lo e riu-se. O Rato juntou-se ao gordo, cujo rabo era enorme, e
deu-lhe uma palmada nas costas. Este adora as soldadeiras, mas elas chamam-lhe
Peida Gorda. E nós gostámos do nome! Peida Gorda, Peida Gorda, passa o dia a
comer açorda!, trauteou. O visado riu-se. Parecia bonacheirão e amável, mas
também devia ser tímido, como o Santinho, pois nada disse. Ramiro olhou para o
que faltava, a quem inicialmente não vira a cara, pois guiava o cavalo onde ia
o Ameixa. Era muito mais velho do que os outros, tinha os cabelos brancos e o
rosto cheio de rugas, e Ramiro admitiu que fosse até mais idoso do que
Gondomar. Chamam-me Velho, apresentou-se ele. E é o que eu sou, pois lutei
ainda com El Cid em Valência, há mais de quatro décadas!
A referência ao grande guerreiro
que os trovadores louvavam fez nascer um silêncio respeitoso no grupo, mas o
Velho quebrou-o, perguntando se Ramiro já tinha morto alguns mouros. O rapaz
confessou que nunca estivera em combates e o Velho orgulhou-se: Matei mais de
cem sarracenos. Apontou para o arco e para as flechas de Ramiro e previu: E vós
também ides matar em breve. Ramiro acenou com a cabeça, mas o velho rematou: Ou
morrer. Os outros riram-se muito e nesse momento Gondomar reapareceu e disse
que estava na altura de continuarem, e todos montaram os cavalos, dois a dois,
e regressaram à estrada.
Por vezes, levantam-se-me dúvidas
sobre a forma como Gondomar aceitou Ramiro na Ordem. Porque mudou de ideias? Só
porque admirou a persistência do rapaz? Terá ele pensado que Ramiro, por ser
filho de Paio Soares, sabia do segredo da relíquia? Ou terá desejado mantê-lo
por perto, na esperança de que o pai viesse procurá-lo a Soure? É difícil ter a
certeza, à luz dos acontecimentos posteriores. É por essas e por outras que
esta foi uma investigação tão longa e difícil. A verdade podia estar escondida
em qualquer lado, ou em lado nenhum.
Serra
Morena, Córdova, Abril de 1126
A velha criada de Zulmira foi a
única testemunha dos acontecimentos trágicos que a seguir descrevo. Escondida
dentro de um armário, jurou a Mem que sobrevivera por acaso. Ela dormia com a
outra criada lá em baixo, junto às cozinhas, mas ouvira uma portada bater, no
andar de cima, e levantara-se para a ir fechar. O ferrolho deve estar estragado,
pensou. Tinha de dizer a Taxfin que mandasse substituí-lo. Podiam pedir ao
almocreve que trouxesse outro de Córdova, havia lá bons ferreiros. De súbito,
alarmou-se! Ouviu um gemido de sofrimento no andar de baixo. Abu Zhakaria já
partira, mas as pessoas em Córdova e nas aldeias em redor consideravam o
castelo de Hisn Abi Cherif seguro, os portões estavam sempre cerrados à noite,
era praticamente impossível alguém entrar. Contudo, uma vaga de medo percorreu
o seu corpo. Num pulo, aproximou-se de um armário, na sala ao lado do quarto de
Taxfin. Já enfiada lá dentro, ouviu passos e pouco depois uma voz, no quarto de
Taxfin. Matei a vossa criada, cortei o pescoço à velha. Taxfin estava deitado,
acordara com o barulho da portada a bater e vira um vulto entrar no quarto.
Agitado, reconheceu de imediato aquela voz, ouvira-a muitas vezes, nos nove
anos que estivera com o califa. Aquele timbre rouco e ciciado era
inconfundível. A Morte com Duas Pernas encontrava-se ali, no seu quarto, no seu
castelo! Encostou-se para trás na cama, com as costas apoiadas na parede.
O outro continuou junto à porta,
talvez temesse a chegada de alguém. De repente, atirou algo na direcção de
Taxfin, algo que atravessou o quarto a voar e aterrou aos pés dele. Era a
cabeça de uma das criadas velhas. Em silêncio, Taxfin rezou pela mulher morta.
O homem acrescentou: Nem me viu. Depois, perguntou: Há mais alguém neste
castelo, além de vós? O marido de Zulmira manteve-se calado e o homem insistiu:
Vi roupas de outra mulher. Onde está ela? Taxfin não o iria ajudar. Por isso,
mentiu: Partiu ontem à noite, para Córdova. O filho está doente. Ouviu o outro suspirar e afirmar: Estais a mentir. Foi com Abu
Zhakaria para Coimbra? Taxfin ficou aterrado. Como é que ele sabia? O homem
devia ler os seus os pensamentos, pois elucidou-o: O vosso leal Abu foi
imprudente. Falou de mais em Córdova. Por lá ninguém gosta muito de vós. Não
era novidade, mas pelo menos Taxfin conseguira desviar a atenção dele.
Esperava
que a segunda criada se conseguisse manter escondida. Onde estaria? Olhou para
a cabeça cortada na sua cama. A outra criada, mais nova do que a que morrera,
costumava ir muitas vezes à arrábida onde estava enterrado o primeiro marido de
Zulmira. No dia em que Abu Zhakaria partira, Taxfin vira-a caminhar para lá, um
pouco antes de o grupo se fazer à estrada. Rezou para que estivesse escondida,
e que depois o sepultasse no mausoléu. O outro falou novamente. Haveis ouvido
falar de Alamut? Apesar da escuridão, Taxfin reparou que o homem usava vestes
claras. Lembrou-se de que ele andava sempre com uma túnica branca, apenas com
um cinto vermelho, onde trazia o alfange e dois punhais». In Domingos
Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,