segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. « Abriu os olhos, esvaziou os pulmões. Já tinha os calcanhares mais acomodados, mas sabia que voltariam a doer se tivesse a extravagância de lançar-se em novo andamento»

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26 de Março de 2021

«A minha mãe vira-se para mim, entro nos seus olhos, são olhos verdadeiros. A nata já solidificou sobre o leite fervido. Os olhos da minha mãe, limpos, o seu rosto, esta é aquela juventude que ficará aqui, teremos de avançar sem ela, teremos de continuar, não poderemos deter-nos por nada, nem sequer por aquilo que mais importa, pela única coisa que importa. Ainda estamos sozinhos na cozinha, a minha mãe ainda não preparou as canecas, ainda não misturou o leite, ainda não as adoçou, ainda não chamou as minhas irmãs, ainda não sabe o que vai acontecer ao meu pai, faltam tão poucos anos, ainda não envelheceu, a minha mãe ainda não envelheceu. A minha mãe, os seus olhos jovens e limpos e eu com nove anos, o meu Rui, pode deixar que eu falo com o meu Rui, eu com nove anos, a querer poupá-la de tudo, a querer resolver tudo, a querer segurar-lhe nas mãos e, na hora certa, a querer sussurrar-lhe aos ouvidos: não tenha medo, mãe; não tenha medo, mãe; sou o seu Rui, estou aqui.

Estava escondido atrás das ramas e das flores de um loendro. Com os joelhos pouco dobrados, espreitava o motorista. As flores exageravam no cor-de-rosa e, ao mesmo tempo, tingiam o ar com um perfume doce, grosso, meloso. O sol começava a aquecer e, também por isso, o perfume apurava o açúcar.

Tomou uma posição mais justa, endireitou-se, mas não quis aparecer logo, precisava de dar mais alguns minutos. Lembrou-se dos óculos do Marcello Caetano, já era a segunda vez que tinha essa lembrança naquele dia. Mas logo a seguir olhou na direcção de Espanha, o olhar atravessou a vedação do estádio, lançou-se no começo da estrada. Os campos de oliveiras certinhas, que cobriam uma e outra berma, chegaram da imaginação, ou da memória, em algum desses lugares os observava também.

Pareciam malucos, os pardais, enrolavam-se em tropelias a baixa altitude, desafiavam o sol, sabiam que, a qualquer momento, podiam entrar pelas copas das árvores e descansar as asas e os bicos. Porque começou a saturar-se de esperar, voltou a dobrar ligeiramente os joelhos e voltou a espreitar o motorista entre duas pernadas do loendro.

Lá continuava ele, intrigado, encostava-se e desencostava-se da porta do automóvel, cumprimentava um transeunte, bom dia, trocava frases avulsas com os bombeiros que davam um passo fora do quartel.

Na primeira hora da manhã, quando o senhor Rui chegou de fato de treino, sapatilhas atadas com largos laços, o motorista ficou logo com duas palavras presas na garganta. A rotina é uma forma de lógica; por isso, durante o caminho para o estádio, poucos minutos em ruas sem trânsito, o motorista franziu a cara e calculou há quantos anos o patrão não começava o dia com aquela ginástica. Não alcançou um número certo. Em vez de concluir esse raciocínio, dedicou-se a pequenos sinais, gestos ou sugestões, espécie de pequenas perguntas ocultas, discretíssimas. Mas o patrão, senhor Rui, optou por olhar para o lado, ignorar o rosto metediço no espelho retrovisor e restantes códigos.

No estacionamento, puxado o travão de mão, quando o motorista se ofereceu para acompanhá-lo, recebeu logo resposta negativa, o senhor Rui levantou a palma da mão e agitou-a. E prescindiu de outras palavras, apenas um certo tom, cara sisuda. Às vezes, fazia falta esse rigor. E afastou-se em linha recta, na medida do possível, para o circuito de manutenção. Nos pensamentos, quase ofendido, parecia-lhe que aquele interesse desafiava as suas competências e respondia a acusações que não tinham sido realmente feitas. Era a idade, cismou que a desconfiança do motorista nascia do tema da idade. Os novos têm a arrogância do que desconhecem, bamboleiam-se todos manientos, carregados de presunção, sem repararem que levam um céu de pedra suspenso sobre a cabeça, nuvens esculpidas. Está mesmo ali, bastaria um movimento de pescoço para enxergá-lo, mas ficam de olhos turvos quando dirigem a vista para certas lonjuras, conforme olhos de peixe morto, ganham a mesma capa de cegueira.

Influído por esse despique, passou diante das bilheteiras do estádio do Campomaiorense, quatro buracos quadrados numa parede, e entrou no circuito de manutenção. Seguia de queixo erguido, acompanhava os passos com movimento atlético de cotovelos ao longo do corpo mas, de repente, os artelhos tomaram outra decisão. E, logo os dois ao mesmo tempo, lançaram uma pontada que lhe apanhou os calcanhares, o peito dos pés, articulações, tendões, músculos. Só teve tempo de se encostar ao vulto do loendro e serenar. Pensou numa cadeira ou num banco, mas aquela sombra já era de valor. Fechou os olhos, encheu os pulmões. Lembrou-se do sentinela no Quartel do Trem, a hora de sair, licença, e o sentinela lá estava, sempre um rapaz amedrontado, por mais que o escondesse numa cara desta ou daquela maneira, um rapaz em sentido, a cabeça a assar no capacete, os pés a ferverem nas botas, meias de fio áspero. Abriu os olhos, esvaziou os pulmões. Já tinha os calcanhares mais acomodados, mas sabia que voltariam a doer se tivesse a extravagância de lançar-se em novo andamento. Lembrou-se das razões porque deixou de fazer aquela caminhada, pequena derrota, mais uma». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,