26 de Março de 2021
«A minha mãe vira-se para mim,
entro nos seus olhos, são olhos verdadeiros. A nata já solidificou sobre o
leite fervido. Os olhos da minha mãe, limpos, o seu rosto, esta é aquela
juventude que ficará aqui, teremos de avançar sem ela, teremos de continuar,
não poderemos deter-nos por nada, nem sequer por aquilo que mais importa, pela
única coisa que importa. Ainda estamos sozinhos na cozinha, a minha mãe ainda
não preparou as canecas, ainda não misturou o leite, ainda não as adoçou, ainda
não chamou as minhas irmãs, ainda não sabe o que vai acontecer ao meu pai,
faltam tão poucos anos, ainda não envelheceu, a minha mãe ainda não envelheceu.
A minha mãe, os seus olhos jovens e limpos e eu com nove anos, o meu Rui, pode
deixar que eu falo com o meu Rui, eu com nove anos, a querer poupá-la de tudo,
a querer resolver tudo, a querer segurar-lhe nas mãos e, na hora certa, a
querer sussurrar-lhe aos ouvidos: não tenha medo, mãe; não tenha medo, mãe; sou
o seu Rui, estou aqui.
Estava escondido atrás das ramas
e das flores de um loendro. Com os joelhos pouco dobrados, espreitava o
motorista. As flores exageravam no cor-de-rosa e, ao mesmo tempo, tingiam o ar
com um perfume doce, grosso, meloso. O sol começava a aquecer e, também por
isso, o perfume apurava o açúcar.
Tomou uma posição mais justa,
endireitou-se, mas não quis aparecer logo, precisava de dar mais alguns
minutos. Lembrou-se dos óculos do Marcello Caetano, já era a segunda vez que
tinha essa lembrança naquele dia. Mas logo a seguir olhou na direcção de
Espanha, o olhar atravessou a vedação do estádio, lançou-se no começo da
estrada. Os campos de oliveiras certinhas, que cobriam uma e outra berma, chegaram
da imaginação, ou da memória, em algum desses lugares os observava também.
Pareciam malucos, os pardais,
enrolavam-se em tropelias a baixa altitude, desafiavam o sol, sabiam que, a
qualquer momento, podiam entrar pelas copas das árvores e descansar as asas e
os bicos. Porque começou a saturar-se de esperar, voltou a dobrar ligeiramente
os joelhos e voltou a espreitar o motorista entre duas pernadas do loendro.
Lá continuava ele, intrigado,
encostava-se e desencostava-se da porta do automóvel, cumprimentava um
transeunte, bom dia, trocava frases avulsas com os bombeiros que davam um passo
fora do quartel.
Na primeira hora da manhã, quando
o senhor Rui chegou de fato de treino, sapatilhas atadas com largos laços, o
motorista ficou logo com duas palavras presas na garganta. A rotina é uma forma
de lógica; por isso, durante o caminho para o estádio, poucos minutos em ruas
sem trânsito, o motorista franziu a cara e calculou há quantos anos o patrão não
começava o dia com aquela ginástica. Não alcançou um número certo. Em vez de
concluir esse raciocínio, dedicou-se a pequenos sinais, gestos ou sugestões,
espécie de pequenas perguntas ocultas, discretíssimas. Mas o patrão, senhor
Rui, optou por olhar para o lado, ignorar o rosto metediço no espelho
retrovisor e restantes códigos.
No estacionamento, puxado o
travão de mão, quando o motorista se ofereceu para acompanhá-lo, recebeu logo
resposta negativa, o senhor Rui levantou a palma da mão e agitou-a. E
prescindiu de outras palavras, apenas um certo tom, cara sisuda. Às vezes,
fazia falta esse rigor. E afastou-se em linha recta, na medida do possível,
para o circuito de manutenção. Nos pensamentos, quase ofendido, parecia-lhe que
aquele interesse desafiava as suas competências e respondia a acusações que não
tinham sido realmente feitas. Era a idade, cismou que a desconfiança do
motorista nascia do tema da idade. Os novos têm a arrogância do que
desconhecem, bamboleiam-se todos manientos, carregados de presunção, sem
repararem que levam um céu de pedra suspenso sobre a cabeça, nuvens esculpidas.
Está mesmo ali, bastaria um movimento de pescoço para enxergá-lo, mas ficam de
olhos turvos quando dirigem a vista para certas lonjuras, conforme olhos de
peixe morto, ganham a mesma capa de cegueira.
Influído por esse despique,
passou diante das bilheteiras do estádio do Campomaiorense, quatro buracos
quadrados numa parede, e entrou no circuito de manutenção. Seguia de queixo
erguido, acompanhava os passos com movimento atlético de cotovelos ao longo do
corpo mas, de repente, os artelhos tomaram outra decisão. E, logo os dois ao
mesmo tempo, lançaram uma pontada que lhe apanhou os calcanhares, o peito dos
pés, articulações, tendões, músculos. Só teve tempo de se encostar ao vulto do
loendro e serenar. Pensou numa cadeira ou num banco, mas aquela sombra já era
de valor. Fechou os olhos, encheu os pulmões. Lembrou-se do sentinela no
Quartel do Trem, a hora de sair, licença, e o sentinela lá estava, sempre um
rapaz amedrontado, por mais que o escondesse numa cara desta ou daquela
maneira, um rapaz em sentido, a cabeça a assar no capacete, os pés a ferverem
nas botas, meias de fio áspero. Abriu os olhos, esvaziou os pulmões. Já tinha
os calcanhares mais acomodados, mas sabia que voltariam a doer se tivesse a
extravagância de lançar-se em novo andamento. Lembrou-se das razões porque
deixou de fazer aquela caminhada, pequena derrota, mais uma». In
José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN
978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,