26 de Março de 2021
«Se continuasse nessa direcção,
pouco tardaria para alcançar a fronteira. Ali, no sossego, os nervos da
fronteira eram uma memória inofensiva, despertaram-lhe certa forma de
entusiasmo ou de juventude, mas não deu o passo que ultrapassaria essa linha,
regressou de repente ao discernimento do quarto, ainda o corpo na mesma posição,
imóvel, deitado, interessado no morno, a madrugada.
O passado tem de provar
constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam
o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada
apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade
desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido.
Lembrou-se do bolo seco na boca, a mastigar o bolo, a não conseguir engoli-lo,
voltas e voltas na boca, um cálice de licor, a molhar a ponta dos lábios num
cálice de licor, esse doce a misturar-se com a massa mastigada do bolo. O
passado é enorme, é como uma montanha, e assenta inteiro sobre o presente, que
é como uma agulha, como a ponta afiada de uma agulha. Uma montanha assente
sobre a ponta de uma agulha, onde é que já se viu?
Imóvel, deitado, libertava frases
dentro de si. Eram frases que se afastavam na escuridão, tinha tempo de
observá-las, considerá-las. Talvez devido ao silêncio daquela hora, talvez
devido à limpeza do jejum, eram frases que continham uma verdade solene e
ardente, com alguma angústia às vezes, sobretudo no momento em que começavam a
desfazer-se, a misturar-se com as coisas esquecidas, a voz a tornar-se vaporosa.
A quem pertencia aquela voz? Fixou-se nela. Escutou-a com a mesma clareza com
que teria escutado uma voz vinda de fora, alguém a falar-lhe. No entanto,
aquela era uma voz que dizia eu
e que, ao fazê-lo, se referia a ele. Quem dizia eu no seu interior? Era ele aquela voz?
Sentiu a mulher a seu lado, que
nome bonito, Alice, nome de menina, e quase pensou em despertá-la, partilhar o
alívio. Mas conhecia bem o seu rosto adormecido, amparou-se nele tantas vezes
ao longo das décadas, rosto indefeso, confiança absoluta, Alice, vários rostos
e, no entanto, sempre o mesmo. Essa lembrança, como fotografias sobrepostas,
chegou-lhe à garganta, a ternura é uma forma sublime de amizade. E, ainda de
olhos fechados, precisou de inspirar fundo, como se sorvesse toda a escuridão
e, logo a seguir, a devolvesse à madrugada.
Abriu os olhos, regressou ao seu
corpo. Começou por virar-se devagar e, ao fazê-lo, regressou à sua idade: oitenta
e nove anos, esse número. Enquanto rolava o corpo no colchão, cilindro,
insecto lento, tentava não acordar a mulher, ruídos de molas, juntas da cama, corrente
de ar abrupta ao rés dos lençóis. Ao mesmo tempo, uma guinada na lombar, a nuca
pouco articulada, os pulsos a terem de ser manobrados com prudência para não se
abrirem numa luxação. E, na saída da roupa da cama, reprimiu o suspiro que a
coluna aprumada e as vértebras encaixadas lhe pediram. A ponta do pé, embicada,
tocou o chão». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN
978-989-722-460-7.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,