O homem e o Mito
«Á
lvaro Barreirinhas Cunhal nasceu no dia 10 de Novembro de 1913 na Maternidade
Daniel de Matos, em Coimbra, filho de Avelino Henriques da Costa Cunhal
(1887-1966) e de Mercedes Simões Ferreira Barreirinhas (1888-1971). Morreu
em Lisboa no dia 13 de Junho de 2005 com 92 anos. Foi uma das maiores
figuras políticas e intelectuais do século XX português e do próprio movimento
comunista internacional, mas recusou escrever uma autobiografia que ajudasse a
compreender essa parte significativa da memória colectiva dos Portugueses. Um
livro de memórias é, em geral, uma coisa tão aborrecida; é um dicionário de factos
que uma pessoa colecciona, repetiu ao longo de décadas. Álvaro Cunhal aprendeu
a controlar instintivamente os mecanismos de comunicação com as massas e
aperfeiçoou o seu domínio ao longo dos anos. As entrevistas foram doseadas de
forma austera, tendo em consideração a sua longevidade e relevância política, e
as declarações públicas surgiram quase sempre espartilhadas para revelar
somente o pretendido. O homem confundiu-se demasiadas vezes com o mito nesta
névoa.
O
próprio PCP aceitou o mistério biográfico em nome da aversão de Álvaro Cunhal
ao culto da personalidade e sintetizou a vida do expoente máximo do comunismo
português numa árida nota biográfica. Álvaro Cunhal chegou a recusar que a sua
fotografia fosse utilizada nas campanhas eleitorais do PCP em nome das virtudes
do colectivo sobre as individualidades. O ideal comunista estava acima dos
homens porque os homens podem falhar. A História escreveu-se de outra maneira
porque o PCP foi durante décadas o próprio Álvaro Cunhal, mas Álvaro Cunhal era
muito mais do que apenas o PCP.
A
glória não está apenas na personalidade, mas no modelo de imortalidade. Os
caminhos parecem por isso conduzir para a um semideserto identitário. Interrogam-me
muitas vezes sobre a minha vida. Gostaria de dizer o seguinte: a minha vida
é inseparável da vida de todos os comunistas de Portugal, afirmou em 1962,
ao jornal Pravda, quando a sua liderança se tornara inequívoca. Existe um texto
de carácter biográfico escrito por Júlio Fogaça em 1954 para responder às
regras de funcionário impostas pelo movimento comunista internacional para
controlo dos Quadros. Soma-se uma nota sintética actualizada após o seu
regresso de Moscovo em 1974 para ser distribuída aos jornalistas portugueses
por necessidades operacionais.
Por
último, está publicada uma narrativa de carácter panfletário que se tentou
tornar asséptica através da publicação na União Soviética. É neste texto
empenhado que se encontram alguns indícios da imagem que Álvaro Cunhal aceitava
projectar de si próprio, na medida em que se assumiu como fonte directa da
autora. Trata-se de um insuficiente exercício biográfico escrito por Yulia
Leonidovna Petrova, neta do então líder dos comunistas russos, Nikita
Khrushchev, tendo por base algumas conversas soltas com o próprio biografado.
Hastes sem Bandeiras teve a sua primeira publicação em 1963 na editora Pravda,
mas o PCP adiou a sua reedição em Portugal e remeteu o original para a
obscuridade. A tradução de Francisco Ferreira, o celebrizado Chico da CUF,
importante dissidente comunista e adversário militante de Cunhal, tornou-se na
fonte secundária mais utilizada para aceder ao texto original. O exercício
traduz um esforço para desmistificar alguns factos do percurso de Álvaro Cunhal
e, acima de tudo, pretende constituir-se como acusação contra o herói soviético.
O antigo dirigente comunista tenta desmontar a imagem de Cunhal enquanto
produto de marketing da velha escola soviética especializada em construir e
desconstruir os líderes comunistas internacionais.
É
verdade que Álvaro Cunhal se apresentou durante um importante período da
história da União Soviética como um modelo de dirigente comunista e atingiu um
elevado nível de reconhecimento entre os seus correligionários internacionais.
Beneficiou de um estatuto que durou largos anos e que lhe permitiu viver com
tranquilidade em Moscovo e em França com o apoio directo do Partido Comunista
da União Soviética (PCUS) e circular por todos os países socialistas com
considerável liberdade de movimentos. A classe dirigente reconhecia-lhe mérito
político, empenho pessoal e, acima de tudo, a necessária disciplina
revolucionária. Álvaro Cunhal prescindiu de uma parte da sua vida e dos afectos
para se dedicar a uma causa de inspiração transcendente que exigiu submeter-se
a intensos sacrifícios físicos e psicológicos. O seu percurso tornou-se numa
teologia da revolução.
A
convicção férrea e a dinâmica emocional controlada permitiram-lhe suportar as
privações com a mesma determinação com que penalizou os que abriram brechas na
couraça revolucionária. Também revelou uma profunda intolerância e desprezo
para com os dissidentes intelectuais e criticou duramente os que cederam às
torturas físicas por comprometerem a segurança colectiva e a moral
revolucionária. A disciplina e a fidelidade tornaram-se dogmas de
comportamento. Álvaro Cunhal lutou pelas virtudes do comunismo em sintonia com
as orientações do movimento comunista internacional, mas as suas convicções e o
seu comportamento foram muito além da conjuntura dos líderes que foram passando
pela Praça Vermelha. O projecto de sociedade global e de homem novo defendido
ao longo de décadas resistiu a várias tentativas externas de destruição do PCP
e dos seus dirigentes e exigiu a depuração de resistências interna que se
manifestaram em vários casos com contornos de violência psicológica e física». In Adelino
Cunha, Álvaro Cunhal. Retrato Pessoal e Íntimo, 2010, Saída de Emergência,
2020, ISBN 978-989-889-270-6.
Cortesia de SaídaEmergência/JDACT
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