sábado, 30 de dezembro de 2023

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra!»

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O Breviário

«Mas eles acudiam muitas vezes por estes sítios, salteando o que achavam mal provido. Tornássemos com a brevidade possível, rogava-nos. Partimos da nau e já teríamos caminhado um bom tiro de arco quando dela veio correndo após nós um veneziano com quem tínhamos muita familiaridade.  Fra Pantaleone! Fra Zedilho!, gritava-nos ainda de longe, ofegante. - Aspettate! Que se passa, Francesco? Não sabia da nossa partida, disse-nos em voz baixa, tomando-nos de parte. Foi por acaso que chegou ao convés e nos viu vir. Perguntou a Signor Nicolló e, logo que soube aonde nos dirigíamos, veio ter connosco.

Mas que se passa, Francesco?, insistíamos. Per amor’ di Dio, não seguíssemos! Regressássemos à nau.. Não quiséssemos ir com aqueles gregos. Porquê, Francesco? Porquê? Grave perigo, risco de não tornar!... Perfídia! Má fé! Malícia! Torpe mentira!, gritou de súbito, muito agastado, um dos fidalgos cipriotas, que se havia aproximado e entendido alguma palavra das que Francesco nos dizia, suspeitando o que podia ser. Em companhia de tanta honra como a sua e de seus companheiros não havia que temer!...

Aproximavam-se os outros fidalgos gregos, curiosos com o ruído, querendo saber o que se passava. Francesco está-lhes a inculcar que, se forem connosco, não mais regressarão. Ah! Maldito! Como podeis dizer tal coisa! Infâmia I Per la Madonna! Quem havia de crer em tal aleivosia?, julguei necessário intervir e, virando-me para Francesco, disse-lhe: Meu bom Francesco, muito vos agradecemos, frei Zedilho e eu, o vosso zelo. Mas olhai que exagerais um tanto, porque não podeis pautar a conduta de tão nobres senhores como estes que nos acompanham pela dos salteadores da montanha. Voltai sossegado à nossa nau, que nós seguiremos nosso caminho em muito excelente companhia.

Só fiz isto por bem!, escusava-se envergonhado Francesco. Começava a dar-me conta de uma triste realidade que dizia respeito às relações de cristãos latinos com cristãos gregos. Uns e outros, esquecendo-se de que ambos professam a religião de Cristo, em vez de sentimentos de irmandade cultivam uma tal animosidade que atinge o ódio quando é o caso, como o de Cândia, de a terra de Gregos estar sob o domínio de nação latina, os Venezianos.

Maldito veneziano!, rosnou-me ao ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava. Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra! Esta é nossa! Nossa!... Contou-me que é tão grande o ódio que os Candiotos têm aos latinos, vendo-se deles sopeados e sujeitos, que muitas vezes tem acontecido, achando gregos a algum latino só e em parte que ninguém o possa testemunhar, não terem a menor hesitação e escrúpulo em o matar. Mas nós éramos latinos e eles não nos estavam mostrando ódio! Explicava-me que o ódio era a Veneza, e nós, padres da Ordem de São Francisco que eles sobremaneira prezavam, além de que tinham em muita admiração e estima Portugueses e Espanhóis, cujos feitos corriam mundo... Assim, seguindo nosso caminho, por experiência vimos não ser sem causa o aviso de Francesco, embora errado em relação aos cipriotas que nos acompanhavam. Estes senhores gregos não consentem que um só momento nos apartemos deles. Que eram paragens muito perigosas aquelas! Havia muitos ladrões e os homens selvagens como os que víramos na nau estavam acostumados a sair aos caminhos a buscar sua presa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,