O Breviário
«Mas eles acudiam muitas vezes
por estes sítios, salteando o que achavam mal provido. Tornássemos com a
brevidade possível, rogava-nos. Partimos da nau e já teríamos caminhado um bom
tiro de arco quando dela veio correndo após nós um veneziano com quem tínhamos
muita familiaridade. Fra Pantaleone! Fra
Zedilho!, gritava-nos ainda de longe, ofegante. - Aspettate! Que se passa,
Francesco? Não sabia da nossa partida, disse-nos em voz baixa, tomando-nos de
parte. Foi por acaso que chegou ao convés e nos viu vir. Perguntou a Signor Nicolló
e, logo que soube aonde nos dirigíamos, veio ter connosco.
Mas que se passa, Francesco?,
insistíamos. Per amor’ di Dio,
não seguíssemos! Regressássemos à nau.. Não quiséssemos ir com aqueles
gregos. Porquê, Francesco? Porquê? Grave perigo, risco de não tornar!...
Perfídia! Má fé! Malícia! Torpe mentira!, gritou de súbito, muito agastado, um
dos fidalgos cipriotas, que se havia aproximado e entendido alguma palavra das
que Francesco nos dizia, suspeitando o que podia ser. Em companhia de tanta honra
como a sua e de seus companheiros não havia que temer!...
Aproximavam-se os outros fidalgos
gregos, curiosos com o ruído, querendo saber o que se passava. Francesco
está-lhes a inculcar que, se forem connosco, não mais regressarão. Ah! Maldito!
Como podeis dizer tal coisa! Infâmia I Per la Madonna! Quem havia de crer em tal aleivosia?,
julguei necessário intervir e, virando-me para Francesco, disse-lhe: Meu bom
Francesco, muito vos agradecemos, frei Zedilho e eu, o vosso zelo. Mas olhai
que exagerais um tanto, porque não podeis pautar a conduta de tão nobres
senhores como estes que nos acompanham pela dos salteadores da montanha. Voltai
sossegado à nossa nau, que nós seguiremos nosso caminho em muito excelente
companhia.
Só fiz isto por bem!, escusava-se
envergonhado Francesco. Começava a dar-me conta de uma triste realidade que
dizia respeito às relações de cristãos latinos com cristãos gregos. Uns e
outros, esquecendo-se de que ambos professam a religião de Cristo, em vez de
sentimentos de irmandade cultivam uma tal animosidade que atinge o ódio quando
é o caso, como o de Cândia, de a terra de Gregos estar sob o domínio de nação latina,
os Venezianos.
Maldito veneziano!, rosnou-me ao
ouvido, quando já seguíamos caminho, um dos caloiros gregos que nos acompanhava.
Porquê?, perguntava eu. Fossem para a sua terra! Esta é nossa! Nossa!... Contou-me
que é tão grande o ódio que os Candiotos têm aos latinos, vendo-se deles
sopeados e sujeitos, que muitas vezes tem acontecido, achando gregos a algum
latino só e em parte que ninguém o possa testemunhar, não terem a menor
hesitação e escrúpulo em o matar. Mas nós éramos latinos e eles não nos estavam
mostrando ódio! Explicava-me que o ódio era a Veneza, e nós, padres da Ordem de
São Francisco que eles sobremaneira prezavam, além de que tinham em muita
admiração e estima Portugueses e Espanhóis, cujos feitos corriam mundo...
Assim, seguindo nosso caminho, por experiência vimos não ser sem causa o aviso
de Francesco, embora errado em relação aos cipriotas que nos acompanhavam.
Estes senhores gregos não consentem que um só momento nos apartemos deles. Que
eram paragens muito perigosas aquelas! Havia muitos ladrões e os homens
selvagens como os que víramos na nau estavam acostumados a sair aos caminhos a
buscar sua presa». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,