«(…) Primeiro, a convenientia. Na verdade,
por esta palavra é designada com mais força a vizinhança dos lugares que a
similitude. São convenientes as coisas que, aproximando-se umas das outras, vêm
a emparelhar-se; tocam-se nas bordas, as suas franjas se misturam, a
extremidade de uma designa o começo da outra. Desse modo, comunica-se o
movimento, comunicam-se as influências e as paixões, e também as propriedades.
De sorte que, nessa articulação das coisas, aparece uma semelhança. Dupla,
desde que se tenta destrinchá-la: semelhança do lugar, do local onde a natureza
colocou as duas coisas, similitude, pois, de propriedades; pois, neste continente
natural que é o mundo, a vizinhança não é uma relação exterior entre as coisas,
mas o signo de um parentesco ao menos obscuro. E, depois, desse contacto nascem
por permuta novas semelhanças; um regime comum se impõe; à similitude como
razão surda da vizinhança, superpõe-se uma semelhança que é o efeito visível da
proximidade. A alma e o corpo, por exemplo, são duas vezes convenientes: foi
preciso que o pecado tivesse tornado a alma espessa, pesada e terrestre, para
que Deus a colocasse nas entranhas da matéria. Mas, por essa vizinhança, a alma
recebe os movimentos do corpo e se assimila a ele, enquanto o corpo se altera e
se corrompe pelas paixões da alma. Na vasta sintaxe do mundo, os diferentes
seres se ajustam uns aos outros; a planta comunica com o animal, a terra com o
mar, o homem com tudo o que o cerca. A semelhança impõe vizinhanças que, por
sua vez, asseguram semelhanças. O lugar e a similitude se imbricam: vê-se crescer
limos nos dorsos das conchas, plantas nos galhos dos cervos, espécies de ervas
no rosto dos homens; e o estranho zoófito justapõe, misturando-as, as propriedades
que o tornam semelhante tanto à planta quanto ao animal. São signos de conveniência.
A convenientia é
uma semelhança ligada ao espaço na forma da aproximação gradativa. É da ordem
da conjunção e do ajustamento. Por isso pertence menos às próprias coisas que
ao mundo onde elas se encontram. O mundo é a conveniência universal das coisas;
há tantos peixes na água quanto sobre a terra animais ou objectos produzidos
pela natureza ou pelos homens (não há peixes que se chamam Episcopus, outros Catena, outros Priapus?); na água e sobre a superfície da terra, tantos seres
quantos os há no céu e aos quais correspondem; enfim, em tudo o que é criado,
há tantos quantos se poderiam encontrar eminentemente contidos em Deus, Semeador
da Existência, do Poder, do Conhecimento e do Amor. Assim, pelo encadeamento da
semelhança e do espaço, pela força dessa conveniência que avizinha o semelhante
e assimila os próximos, o mundo constitui cadeia consigo mesmo. Em cada ponto
de contacto começa e acaba um elo que se assemelha ao precedente e se assemelha
ao seguinte: e, de círculos em círculos, as similitudes prosseguem retendo os
extremos na sua distância (Deus e a matéria), aproximando-os, de maneira que a
vontade do Todo-Poderoso penetre até os recantos mais adormecidos. É essa
cadeia imensa, estendida e vibrante, essa corda da conveniência, que Porta
evoca num texto de sua Magia natural:
No tocante à sua vegetação, a planta convém com a besta bruta e, por
sentimento, o animal brutal com o homem, que se conforma ao resto dos astros
por sua inteligência; essa ligação procede tão apropriadamente que parece uma
corda estendida desde a primeira causa até as coisas baixas e ínfimas, por uma
ligação recíproca e contínua; de sorte que a virtude superior, expandindo os
seus raios, chegará a tal ponto que, se lhe tocarmos uma extremidade, tremerá e
fará mover o resto. A segunda forma da similitude é a aemulatio: uma espécie de
conveniência, mas que fosse liberta da lei do lugar e actuasse, imóvel, na
distância. Um pouco como se a conveniência espacial tivesse sido rompida, e os elos
da cadeia, desatados, reproduzissem os seus círculos longe uns dos outros,
segundo uma semelhança sem contacto. Há na emulação algo do reflexo e do
espelho: por ela, as coisas dispersas através do mundo se correspondem. De
longe, o rosto é o émulo do céu e, assim como o intelecto do homem reflecte, imperfeitamente,
a sabedoria de Deus, assim os dois olhos, com a sua claridade limitada, reflectem
a grande iluminação que, no céu, expandem o Sol e a Lua; a boca é Vénus, pois
que por ela passam os beijos e as palavras de amor; o nariz dá a minúscula
imagem do cetro de Júpiter e do caduceu de Mercúrio. Por esta relação de
emulação, as coisas podem imitar-se de uma extremidade à outra do universo sem
encadeamento nem proximidade: por sua reduplicação em espelho, o mundo abole a
distância que lhe é própria; triunfa assim sobre o lugar que é dado a cada
coisa. Desses reflexos que percorrem o espaço, quais são os primeiros? Onde a
realidade, onde a imagem projectada? Frequentemente não é possível dizê-lo,
pois a emulação é uma espécie de geminação natural das coisas; nasce de uma
dobra do ser, cujos dois lados imediatamente se defrontam. Paracelso compara
essa duplicação fundamental do mundo à imagem de dois gémeos que se assemelham
perfeitamente, sem que seja possível a ninguém dizer qual deles trouxe ao outro
a sua similitude». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes
Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.
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