sábado, 13 de outubro de 2018

O Evangelho Segundo Jesus Cristo. José Saramago. «Contudo, não se devendo medir os méritos dos homens apenas pela bitola das suas competências profissionais, convém dizer que, apesar da sua pouca idade»


Cortesia de wikipedia

«(…) Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher. Ora, a estas alturas, Deus já nem no pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da casa, não desabaram, nem a terra se abriu. Apenas, pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre estas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se, Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem disse isto podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro José levantou-se da esteira, enrolou-a juntamente com a do marido e dobrou o lençol comum.
Viviam José e Maria num lugarejo chamado Nazaré, terra de pouco e de poucos, na região de Galileia, numa casa igual a quase todas, como um cubo torto feito de tijolos e barro, pobre entre pobres. Invenções de arte arquitectónica, nenhumas, apenas a banalidade uniforme de um modelo incansavelmente repetido. Com o propósito de poupar alguma coisa nos materiais, tinham-na construído na encosta da colina, apoiada ao declive, escavado pelo lado de dentro, deste modo se criando uma parede completa, a fundeira, com a vantagem adicional de ficar facilitado o acesso à açoteia que formava o tecto. Já sabemos ser José carpinteiro de ofício, regularmente hábil no mester, porém sem talento para perfeições sempre que lhe encomendem obra de mais finura. Estas insuficiências não deveriam escandalizar os impacientes, pois o tempo e a experiência, cada um com seu vagar, ainda não são bastantes para acrescentar, ao ponto de dar-se por isso no trabalho de todos os dias, o saber oficinal e a sensibilidade estética de um homem que mal passou dos vinte anos e vive em terra de tão escassos recursos e ainda menores necessidades.
Contudo, não se devendo medir os méritos dos homens apenas pela bitola das suas competências profissionais, convém dizer que, apesar da sua pouca idade, é este José do mais piedoso e justo que em Nazaré se pode encontrar, exacto na sinagoga, pontual no cumprimento dos deveres, e não tendo sido a sua fortuna tanta que o tivesse dotado Deus duma facúndia capaz de o distinguir dos mortais comuns, sabe discorrer com propriedade e comentar com acerto, mormente se vem a propósito introduzir no discurso alguma imagem ou metáfora relacionadas com o seu ofício, por exemplo, a carpintaria do universo. Porém, porque lhe tivesse faltado na origem o golpe de asa duma imaginação verdadeiramente criadora, nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos vindouros, menos ainda um daqueles certeiros remates em que a exemplaridade da lição se percebe logo à transparência das palavras, tão luminosa que no futuro rejeitará qualquer intrometida glosa, ou, pelo contrário, suficientemente obscura, ou ambígua, para tornar-se nos dias de amanhã em prato favorito de eruditos e outros especialistas». In José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.

Cortesia de Caminho/JDACT