quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «É o rei, sussurra Katherine. Quando ele tirar a máscara, deve fingir estar surpresa. Mas por quê? O seu rosto é a imagem do desconcerto»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Uma vez de volta à calma relativa dos aposentos de lady Mary, Susan Clarencieux empurra-as todas para as salas externas e ajuda Mary, que parece à beira do colapso, a entrar no quarto. As garotas mais jovens, agora que estão em particular, começam a tirar as suas toucas elaboradas e a soltar os vestidos, conversando e rindo. As mulheres circulam em pequenos grupos, entregando-se enfim à leitura ou à costura, e distribui-se vinho com especiarias. Katherine está prestes a partir quando um tumulto começa do lado de fora, tambores e canto acompanhados por um alaúde e um forte ruído de passos. As garotas todas pegam nas suas toucas, vestem-nas apressadamente outra vez, ajudando umas às outras a amarrá-las, enfiando mechas soltas para dentro, enquanto beliscam a bochecha e mordem os lábios. As portas abrem-se e um bando de menestréis mascarados entra dançando na sala em meio a uma cacofonia de aplausos e assobios. Eles saltitam numa dança complicada, girando em grupos de oito, empurrando as damas para os cantos. Katherine sobe num banco, levando Meg junto, a fim de enxergar por cima das pessoas. Pode sentir a atmosfera no cómodo elevar-se para um frenesim contido, como estática antes da tempestade.
A sua irmã Anne segura uma das garotas e diz: chame Susan. Diga-lhe que há uma visita e lady Mary precisa de se apresentar. Katherine agora vê o motivo de toda a agitação e mal contém o espanto, ali no meio dos menestréis rodopiantes, mancando e equilibrando a sua enorme forma, está o rei, vestido absurdamente, com uma perna preta e a outra branca. Ela se lembra dele fazendo isso anos atrás, acreditando-se completamente disfarçado, e a corte toda cúmplice na pantomima, tão desesperado estava por descobrir se as pessoas estavam tão encantadas com o homem quanto com o rei. Irrompia no salão como agora, cercado de seus cortesãos mais elevados, e ele, uma cabeça mais alto que todos os outros, ágil, forte, vigoroso, era de facto uma figura impressionante; o efeito era completamente desarmador, especialmente para Katherine, que naquela época era só uma menina. Mas pandegar daquele jeito, mal sendo capaz de ficar de pé sem o apoio de um homem de cada lado, o gibão de menestrel esticado sobre a cintura cilíndrica, com os fechos esturricados, tem ar de desespero. E estar cercado de tão bem formados espécimes, os seus belos arautos e camareiros, jovens e cheios de vida, musculosos pela caça, torna a brincadeira toda pior ainda. Meg está de pé, boquiaberta.
É o rei, sussurra Katherine. Quando ele tirar a máscara, deve fingir estar surpresa. Mas por quê? O seu rosto é a imagem do desconcerto. Katherine dá de ombros. O que poderia dizer? A corte toda deve ser conivente com uma ilusão que faz o rei se sentir jovem e amado por si mesmo, quando na realidade tudo que ele inspira actualmente é medo. É a corte, Meg, ela diz. As coisas aqui com frequência são difíceis de explicar. Os homens agora estão saltitando num círculo e no centro está a pequena Anne Basset, posando timidamente. A sua mãe, lady Lisle, observa, praticamente salivando, enquanto a filha madura de dezasseis anos gira entre os homens sob o olhar ganancioso do rei. Temo que a história esteja a se repetir, murmura Anne. Ela não precisa dizer de que modo, a sala toda está pensando em Catherine Howard, excepto talvez lady Lisle, cuja razão está sem dúvida encoberta pela ambição. Mas o círculo se desfaz e Anne Basset é levada em rodopios para um canto; a música pára e o rei remove a máscara diante de grandes exclamações de falsa surpresa. A sala toda se ajoelha, os vestidos das damas amarfalham-se no chão num mar de seda. Quem teria adivinhado? O rei!, grita alguém.
Katherine mantém os olhos no chão, inspecciona os detalhes das tábuas de madeira, resistindo à tentação de cutucar a irmã por medo de cair na risada.
Aquilo tudo é mais caricato que uma comédia italiana. Vamos, diz o rei. É uma visita informal. Levantem-se, levantem-se. Agora deixem-nos ver quem está entre vocês. Onde está a nossa filha? A multidão se move, abrindo espaço para lady Mary. Um raro sorriso se espalha no seu rosto e os anos parecem desaparecer como se uma migalha da atenção de seu pai tivesse parado o tempo. Outros homens chegaram e estão andando pela sala. Will está aqui, diz Anne. Com a sua turma. Katherine avista aquela pena subindo e descendo pela sala. O seu estômago revira e ela puxa Meg para o outro lado, mas então se vê diante do rei. Ah, é lady Latymer que vemos se escondendo? Por que se esconde, senhora?» In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
               
Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT