«(…) Uma vez de volta à calma
relativa dos aposentos de lady Mary, Susan Clarencieux empurra-as todas para as
salas externas e ajuda Mary, que parece à beira do colapso, a entrar no quarto.
As garotas mais jovens, agora que estão em particular, começam a tirar as suas
toucas elaboradas e a soltar os vestidos, conversando e rindo. As mulheres
circulam em pequenos grupos, entregando-se enfim à leitura ou à costura, e
distribui-se vinho com especiarias. Katherine está prestes a partir quando um
tumulto começa do lado de fora, tambores e canto acompanhados por um alaúde e
um forte ruído de passos. As garotas todas pegam nas suas toucas, vestem-nas
apressadamente outra vez, ajudando umas às outras a amarrá-las, enfiando mechas
soltas para dentro, enquanto beliscam a bochecha e mordem os lábios. As portas
abrem-se e um bando de menestréis mascarados entra dançando na sala em meio a uma
cacofonia de aplausos e assobios. Eles saltitam numa dança complicada, girando
em grupos de oito, empurrando as damas para os cantos. Katherine sobe num
banco, levando Meg junto, a fim de enxergar por cima das pessoas. Pode sentir a
atmosfera no cómodo elevar-se para um frenesim contido, como estática antes da
tempestade.
A sua irmã Anne segura uma das
garotas e diz: chame Susan. Diga-lhe que há uma visita e lady Mary precisa de se
apresentar. Katherine agora vê o motivo de toda a agitação e mal contém o
espanto, ali no meio dos menestréis rodopiantes, mancando e equilibrando a sua
enorme forma, está o rei, vestido absurdamente, com uma perna preta e a outra
branca. Ela se lembra dele fazendo isso anos atrás, acreditando-se
completamente disfarçado, e a corte toda cúmplice na pantomima, tão desesperado
estava por descobrir se as pessoas estavam tão encantadas com o homem quanto
com o rei. Irrompia no salão como agora, cercado de seus cortesãos mais
elevados, e ele, uma cabeça mais alto que todos os outros, ágil, forte,
vigoroso, era de facto uma figura impressionante; o efeito era completamente
desarmador, especialmente para Katherine, que naquela época era só uma menina.
Mas pandegar daquele jeito, mal sendo capaz de ficar de pé sem o apoio de um
homem de cada lado, o gibão de menestrel esticado sobre a cintura cilíndrica,
com os fechos esturricados, tem ar de desespero. E estar cercado de tão bem
formados espécimes, os seus belos arautos e camareiros, jovens e cheios de
vida, musculosos pela caça, torna a brincadeira toda pior ainda. Meg está de
pé, boquiaberta.
É o rei, sussurra Katherine.
Quando ele tirar a máscara, deve fingir estar surpresa. Mas por quê? O seu
rosto é a imagem do desconcerto. Katherine dá de ombros. O que poderia dizer? A
corte toda deve ser conivente com uma ilusão que faz o rei se sentir jovem e
amado por si mesmo, quando na realidade tudo que ele inspira actualmente é
medo. É a corte, Meg, ela diz. As coisas aqui com frequência são difíceis de
explicar. Os homens agora estão saltitando num círculo e no centro está a pequena
Anne Basset, posando timidamente. A sua mãe, lady Lisle, observa, praticamente
salivando, enquanto a filha madura de dezasseis anos gira entre os homens sob o
olhar ganancioso do rei. Temo que a história esteja a se repetir, murmura Anne.
Ela não precisa dizer de que modo, a sala toda está pensando em Catherine
Howard, excepto talvez lady Lisle, cuja razão está sem dúvida encoberta pela
ambição. Mas o círculo se desfaz e Anne Basset é levada em rodopios para um
canto; a música pára e o rei remove a máscara diante de grandes exclamações de
falsa surpresa. A sala toda se ajoelha, os vestidos das damas amarfalham-se no
chão num mar de seda. Quem teria adivinhado? O rei!, grita alguém.
Katherine mantém os olhos no
chão, inspecciona os detalhes das tábuas de madeira, resistindo à tentação de
cutucar a irmã por medo de cair na risada.
Aquilo
tudo é mais caricato que uma comédia italiana. Vamos, diz o rei. É uma visita
informal. Levantem-se, levantem-se. Agora deixem-nos ver quem está entre vocês.
Onde está a nossa filha? A multidão se move, abrindo espaço para lady Mary. Um
raro sorriso se espalha no seu rosto e os anos parecem desaparecer como se uma
migalha da atenção de seu pai tivesse parado o tempo. Outros homens chegaram e
estão andando pela sala. Will está aqui, diz Anne. Com a sua turma. Katherine
avista aquela pena subindo e descendo pela sala. O seu estômago revira e ela
puxa Meg para o outro lado, mas então se vê diante do rei. Ah, é lady Latymer
que vemos se escondendo? Por que se esconde, senhora?» In Elizabeth
Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz,
2016, ISBN 978-858-439-003-8.
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