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de wikipedia
«(…)
Tendo pois saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um
estertor, que saiu da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o
levíssimo gemido que a mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou
nem tanto, repousou José sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo
a túnica e se cobria com o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele,
de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela
sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor,
nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher. Ora, a estas
alturas, Deus já nem no pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da
casa, não desabaram, nem a terra se abriu. Apenas, pela primeira vez, se ouviu
Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz,
Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre
estas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se,
Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que
quem disse isto podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro
José levantou-se da esteira, enrolou-a juntamente com a do marido e dobrou o
lençol comum.
Viviam
José e Maria num lugarejo chamado Nazaré, terra de pouco e de poucos, na região
de Galileia, numa casa igual a quase todas, como um cubo torto feito de tijolos
e barro, pobre entre pobres. Invenções de arte arquitectónica, nenhumas, apenas
a banalidade uniforme de um modelo incansavelmente repetido. Com o propósito de
poupar alguma coisa nos materiais, tinham-na construído na encosta da colina,
apoiada ao declive, escavado pelo lado de dentro, deste modo se criando uma
parede completa, a fundeira, com a vantagem adicional de ficar facilitado o
acesso à açoteia que formava o tecto. Já sabemos ser José carpinteiro de
ofício, regularmente hábil no mester, porém sem talento para perfeições sempre
que lhe encomendem obra de mais finura. Estas insuficiências não deveriam
escandalizar os impacientes, pois o tempo e a experiência, cada um com seu
vagar, ainda não são bastantes para acrescentar, ao ponto de dar-se por isso no
trabalho de todos os dias, o saber oficinal e a sensibilidade estética de um homem
que mal passou dos vinte anos e vive em terra de tão escassos recursos e ainda
menores necessidades.
Contudo,
não se devendo medir os méritos dos homens apenas pela bitola das suas
competências profissionais, convém dizer que, apesar da sua pouca idade, é este
José do mais piedoso e justo que em Nazaré se pode encontrar, exacto na
sinagoga, pontual no cumprimento dos deveres, e não tendo sido a sua fortuna
tanta que o tivesse dotado Deus duma facúndia capaz de o distinguir dos mortais
comuns, sabe discorrer com propriedade e comentar com acerto, mormente se vem a
propósito introduzir no discurso alguma imagem ou metáfora relacionadas com o
seu ofício, por exemplo, a carpintaria do universo. Porém, porque lhe tivesse
faltado na origem o golpe de asa duma imaginação verdadeiramente criadora,
nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito
que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos
vindouros, menos ainda um daqueles certeiros remates em que a exemplaridade da
lição se percebe logo à transparência das palavras, tão luminosa que no futuro
rejeitará qualquer intrometida glosa, ou, pelo contrário, suficientemente
obscura, ou ambígua, para tornar-se nos dias de amanhã em prato favorito de
eruditos e outros especialistas». In
José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da
Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.
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