sábado, 13 de outubro de 2018

Memorial do Convento. José Saramago. «Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre, por que foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar»

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«(…) Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço, que vinha do palácio aonde fora por instância de Sete-Sóis, desejoso de que se apurasse se sim ou não haveria uma pensão de guerra, se tanto vale a simples mão esquerda, e quando João Elvas, que da vida de Baltasar não sabia tudo, viu aproximar-se o padre, disse em continuação da conversa, Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador, mas ao Voador não cresceram bastante as asas, e assim não poderemos ir espiar as frotas que querem entrar e as intenções ou negócios que trazem. Não pôde Sete-Sóis responder porque o padre, parando arredado, lhe fez sinal para que se aproximasse, assim ficando João Elvas na grande estupefacção de ver o seu amigo bafejado pelos ares do Paço e da Igreja, e já pensando se disto poderia vir a tirar proveito um soldado vadio. E para que alguma coisa se fosse adiantando entretanto, estendeu a mão à esmola, primeiro a um fidalgo que de boa maré lha deu, depois, por distracção, a um frade mendicante que passava exibindo uma imagem e oferecendo-a ao ósculo devoto, com o que João Elvas acabou por largar o que tinha recebido. Não me cair um raio em cima, será pecado praguejar, mas alivia muito.
Disse o padre Bartolomeu Lourenço a Sete-Sóis, Falei com os desembargadores destas matérias, disseram-me que iam ponderar o teu caso, se vale a pena fazeres petição, depois me darão uma resposta, E quando será isso, padre, quis Baltasar saber, ingénua curiosidade de quem acaba de chegar à corte e lhe ignora os usos, Não te sei dizer, mas, tardando, talvez eu possa dizer uma palavra a sua majestade, que me distingue com a sua estima e protecção, Pode falar com el-rei, espantou-se Baltasar, e acrescentou, Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda, que foi condenada pela Inquisição (maldita), que padre é este padre, palavras estas últimas que Sete-Sóis não terá dito em voz alta, só inquieto as pensou. Bartolomeu Lourenço não respondeu, apenas o olhou a direito, e assim ficaram parados, o padre um pouco mais baixo e parecendo mais novo, mas não, têm ambos a mesma idade, vinte e seis anos, como de Baltasar já sabíamos, porém são duas diferentes vidas, a de Sete-Sóis trabalho e guerra, uma acabada, outro que terá de recomeçar, a de Bartolomeu Lourenço, que no Brasil nasceu e novo veio pela primeira vez a Portugal, de tanto estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que prometeu, dizer de cor todo Virgílio, Horácio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Suetónio, Mecenas e Séneca, para diante e para trás, ou donde lhe apontassem, e dar a definição de todas as fábulas que se escreveram, e a que fim as fingiram os gentios gregos e romanos, e também dizer quem foram os autores de todos os livros de versos, antigos e modernos, até ao ano de mil e duzentos, e se alguém lhe dissesse uma poesia, logo responderia a propósito com dez versos seus ali mesmo compostos, e prometia também justificar e defender toda a filosofia e os pontos mais intricados dela, e explicar a parte de Aristóteles, ainda que extensa, com todos os seus embaraços, termos e meios termos, e responder a todas as dúvidas da Sagrada Escritura, tanto do Testamento Velho como do Novo, repetindo de cor, quer a fio corrido quer salteado, todos os Evangelhos dos quatro Evangelistas, para trás e para diante, e o mesmo das epístolas de S. Paulo e S. Jerónimo, e os anos de profeta a profeta e quantos de vida teve cada um deles, e o mesmo de todos os reis da Escritura, e o mesmo, para baixo e para cima, para a esquerda e para a direita, dos Livros dos Salmos, dos Cantares, do Êxodo e todos os Livros dos Reis, e que não são canónicos os dois Livros dos Esdras, como afinal não parecem muito canónicos, diga-se aqui para nós e sem outras desconfianças, este sublime engenho, estas prendas e memória nascidas e criadas em terra de que só temos requerido o ouro e os diamantes, o tabaco e o açúcar, e as riquezas da floresta, e o mais que nela ainda virá a ser encontrado, terra doutro mundo, amanhã e pelos séculos que hão-de vir, sem contar com a evangelização dos tapuias, que só ela nos faria ganhar a eternidade.
Agora me disse aquele meu amigo João Elvas que tendes apelido de Voador, padre, por que foi que vos deram tal nome, perguntou Baltasar. Começou Bartolomeu Lourenço a afastar-se, o soldado foi atrás dele, e, distantes dois passos um do outro, seguiram ao longo do Arsenal da Ribeira das Naus, do palácio do Corte Real, e adiante, nos Remolares, onde a praça se abria para o rio, sentou-se o padre numa pedra, fez sinal a Sete-Sóis para que se acomodasse ao lado dele, e enfim respondeu, como se agora mesmo tivesse ouvido a pergunta, Porque eu voei, e disse Baltasar, duvidoso, Com perdão da confiança, só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham, mas em sonhos não há firmeza, Não tens vivido em Lisboa, nunca te vi, Estive na guerra quatro anos e a minha terra é Mafra, Pois eu faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que ardeu, depois construí outro que subiu até ao tecto duma sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa da Índia e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só voaram os balões, Voaram os balões, foi o mesmo que ter voado eu, Voar balão não é voar homem, O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará, respondeu Bartolomeu Lourenço, mas logo se pôs de joelhos porque estava passando o Corpo de Nosso Senhor para algum doente de qualidade, o padre debaixo do pálio sustentado por seis pessoas, à frente os trombetas, atrás os irmãos da confraria, de opas encarnadas e círios na mão, mais as coisas necessárias à administração do Santíssimo Sacramento, alguma alma impaciente por voar, apenas à espera de que a aliviassem do lastro corporal e a pusessem de frente para o vento que vem do mar largo, ou do fundo universo, ou do último lugar de além. Sete-Sóis também se ajoelhara, tocando o chão com o seu gancho de ferro enquanto se persignava». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT