Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Sim, mas é uma coisa que acontece no fliperama e você
é..., era louco por flíper, como uma criança. Sei o que é um fliperama. Mas não
sei quem sou eu, entende? A névoa cobre o vale Padano. A propósito, onde
estamos? No vale Padano. Vivemos em Milão. Nos meses de Inverno, da nossa casa
vê-se a névoa no parque. Vive em Milão, é um livreiro e tem um antiquário de
livros. A maldição do faraó. Se sou Bodoni e me baptizaram Giambattista só
podia acabar assim. Acabou da forma certa. É muito bem considerado no seu
trabalho, não somos milionários mas vivemos bem. Vou ajudá-lo, pouco a pouco vai conseguir
recuperar-se. Deus meu, quando eu penso, poderia nem ter acordado; os médicos
foram óptimos, pegaram-no a tempo. Meu amor, posso dar-lhe as boas-vindas?
Parece que é a primeira vez que me vê. Pois bem, se eu o estivesse encontrando
agora, pela primeira vez, casaria da mesma maneira. Está bem?
Você é um amor. Preciso de si. É a única que me pode contar
dos meus últimos trinta anos. Trinta e cinco. Nos conhecemos na universidade,
em Turim, você estava para se formar e eu era a caloira perdida nos corredores
do Palácio Campana. Perguntei onde era uma certa sala, logo ficou de olho e
seduziu a colegial indefesa. Depois, entre uma coisa e outra, eu era jovem
demais e você passou três anos no estrangeiro. Em seguida, fomos morar juntos
dizendo que era uma experiência, mas no final fiquei grávida e nos casámos,
afinal você era um cavalheiro. Não, desculpe, também porque nos amávamos, de
verdade, e você gostava da ideia de ser pai. Coragem, pai, vou fazê-lo lembrar
de tudo, vai ver. A não ser que seja tudo um complô, que eu me chame Felicino
Grimaldelli e seja arrombador, que você e Gratarolo estejam me contando um monte
de mentiras, sei lá, talvez porque sejam do serviço secreto e precisem
construir uma nova identidade para me mandar espionar além do Muro de Berlim,
Ipcress Files, e...
Não existe mais Muro de Berlim, foi derrubado e o império soviético
está indo pelo ralo... Jesus, vira a cabeça um momentinho e olha o que
aprontam. Está bem, eu estava brincando, confio em si. O que são os stracchini
de Broglio? O quê? O stracchino é um queijo pastoso, mas esse é o nome que dão
no Piemonte, aqui em Milão se chama crescenza. O que há com os stracchini? Foi
quando eu estava apertando o tubo de pasta de dente. Espere. Havia um pintor
chamado Broglio, que não conseguia manter-se com seus quadros mas não queria
trabalhar argumentando que tinha uma
neurose. Parece que era uma desculpa para ser sustentado pela irmã. Finalmente
os amigos lhe arranjaram um emprego numa empresa que fazia ou vendia queijos.
Ele passava diante de uma grande pilha de stracchini, todos embrulhadinhos em
papel-manteiga, e não resistia à tentação, por causa da neurose (dizia ele):
pegava um por um e chac, esmagava fazendo o stracchino espirrar fora do
embrulho. Depois de ter estragado uma centena de stracchini, foi despedido.
Tudo por culpa da neurose, dizia que para ele sgnaché i
strachèn era um gozo irresistível. Por Deus, Paola, essa é uma lembrança de infância!
Eu não perdi a memória das minhas experiências passadas?
Paola pôs-se a rir. Agora me lembro, desculpe. Claro, era
uma história que aprendeu quando era pequeno. Mas que contava sempre, era como
se diz uma peça do seu repertório, você divertia seus comensais com a história
dos stracchini do pintor e eles a passavam adiante. No entanto, infelizmente,
você não está recordando uma experiência sua, simplesmente sabe uma história
que recitou muitas vezes e que para você virou (como dizer?) um bem público,
como a história de Chapeuzinho Vermelho.
Você está-se a tornar indispensável para mim. Estou
contente de que seja minha mulher. Agradeço-lhe por existir, Paola. Deus meu,
um mês atrás você diria que isso é uma expressão kitsch de telenovela... Desculpe.
Não consigo dizer nada que me venha do coração. Não tenho sentimentos, só ditos
memoráveis. Pobre querido. Bem, essa também é uma frase feita. Cretino. Essa
Paola gosta mesmo de mim. No dialecto milanês, esmagar os stracchini. Passei
uma noite tranquila, sabe-se lá o que Gratarolo me pôs na veia. Despertei aos
poucos, e acho que ainda estava de olhos fechados porque ouvi a voz de Paola
que sussurrava, temendo me acordar: mas não poderia ser uma amnésia
psicogénica?» In Umberto Eco, A
Misteriosa Chama da Rainha Loana, 2004, Editora Record, ISBN 978-850-107-143-9.
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