jdact
«(…) Fez um movimento para retirar-se, mas Maria Cláudia disse,
rapidamente: ai, por minha causa, não, dona Lídia. Isto não tem importância
nenhuma... Disse a última frase com uma intonação e um sorriso que pareciam
dizer que outras coisas teriam importância e que a Lídia bem sabia quais.
Estava de pé, e Lídia exclamou: sente-se, Claudinha! Aí mesmo, na beira da
cama. Com as pernas a tremer, sentou-se. Pousou a mão livre sobre o édredon
forrado de cetim azul e, sem que desse por isso, pôs-se a afagar o tecido
acolchoado, quase com volúpia. Lídia parecia desinteressada. Abrira uma caixa
de cigarros e acendera um Camel. Não fumava por vício ou por
necessidade, mas o cigarro fazia parte de uma complicada rede de atitudes,
palavras e gestos, todos com o mesmo objetivo: impressionar. Isso, em si, já se
transformara numa segunda natureza: desde que estivesse acompanhada, e fosse
qual fosse a companhia, trataria de impressionar. O cigarro, o riscar lento do fósforo, a primeira
baforada de fumo, longa e sonhadora, tudo eram cartas do jogo. Maria Cláudia
explicava ao telefone, com muitos gestos e exclamações, a sua terrível
dor de cabeça. Fazia boquinhas de mimo, boquinhas dolorosas de quem
está muito doente. Às furtadelas, Lídia observava-lhe a mímica. Por fim, a
rapariga desligou e levantou-se: pronto, dona Lídia. E muito obrigada. Ora
essa! Já sabe que está sempre às suas ordens. Dá-me licença? Aqui tem os cinco
tostões da chamada. Patetinha. Guarde o dinheiro. Quando é que perde o hábito
de me querer pagar os telefonemas? Sorriram ambas, olhando-se. Subitamente,
Maria Cláudia teve medo. Não havia de que ter medo, ao menos daquele medo
físico e imediato, mas, de um momento para o outro, sentiu uma presença
assustadora no quarto. Talvez a atmosfera, que há pouco apenas entontecia, se
tivesse tornado, de repente, sufocante.
Bem. Vou-me embora. E, mais uma vez, obrigada. Não quer
ficar mais um bocadinho? Tenho que fazer. A minha mãe está à minha espera. Não
a prendo, então. Lídia trazia um roupão de tafetá duro, vermelho, com os
reflexos esverdeados dos élitros de certos besouros, e deixava atrás de si um
rasto de perfume intenso. Ouvindo o ruge-ruge do tecido e, sobretudo, aspirando
o aroma quente e capitoso que se desprendia de Lídia, aroma que não era só o do
perfume, que era, também, o do próprio corpo de Lídia, Maria Cláudia sentia que
estava a ponto de perder completamente a serenidade. Quando Claudinha, depois
de repetir os agradecimentos, saiu, Lídia voltou ao quarto. O cigarro
queimava-se lentamente no cinzeiro. Esmagou-lhe a ponta para o apagar. Depois,
estendeu-se na cama. Uniu as mãos atrás da nuca e acomodou-se melhor sobre o édredon
macio que Maria Cláudia acariciara. O telefone tocou. Com um gesto cheio de
preguiça, levantou o auscultador: Sim... Sou... Ah! Sim. (...) Quero. Qual é a
ementa, hoje? (...) Está bem. Serve. (...) Não, isso não. (...) Uhm! Está bem.
(...) E a fruta? (...) Não gosto. (...) É escusado. Não gosto. (...) Pode ser.
(...) Bom. Não mande tarde. (...) E não se esqueça de mandar a conta do mês.
(...) Bom dia.
Pousou o auscultador e deixou-se cair outra vez na cama.
Deu um amplo bocejo, com o à-vontade de quem não teme observadores indiscretos,
um bocejo que evidenciava a ausência de um dos últimos molares. Lídia não era
bonita. Feição por feição, a análise concluiria por aquele tipo de fisionomia
que está tão longe da beleza como da vulgaridade. Neste momento, prejudicava-a
o não estar pintada. Tinha o rosto luzidio do creme da noite, e as sobrancelhas,
nas extremidades, exigiam depilação. Lídia não era, de facto, bonita, sem
contar com a circunstância importante de que o calendário já marcara o dia em
que completara trinta e dois anos e que os trinta e três não vinham longe. Mas
de toda ela se desprendia uma sedução absorvente. Os olhos eram
castanho-escuros, os cabelos pretos. O rosto tinha, em momentos de cansaço, uma
dureza masculina, especialmente ao
redor da boca e nas asas do nariz, mas Lídia sabia, com uma ligeira
transformação, torná-lo acariciante, sedutor. Não pertencia ao tipo de mulheres
que atraem pelas formas do corpo, mas, da cabeça aos pés, irradiava
sensualidade. Era bastante hábil para provocar em si própria um frémito que
deixava o amante sem raciocínio, impossibilitado de defender-se daquilo que
supunha ser natural, daquela onda simulada em que se afogava julgando-a
verdadeira. Lídia sabia. Tudo eram cartas do seu jogo, e o seu corpo, delgado
como um junco e vibrante como uma vara de aço, o seu maior trunfo. Hesitou
entre o adormecer e o levantar-se. Pensava em Maria Cláudia, na sua beleza
fresca de adolescente, e, num instante, apesar de sentir indignas de si
quaisquer comparações com uma criança, teve um brusco apertar de coração, um
movimento de inveja que lhe enrugou a testa. Quis arranjar-se, pintar-se, pôr
entre a juventude de Maria Cláudia e a sua sedução de mulher experiente a maior
distância possível. Levantou-se rapidamente. Ligara já o esquentador: a água
para o banho estava pronta. Num só movimento,
despojou-se do roupão. Depois ergueu a camisa de dormir pela fímbria e
despiu-a pela cabeça. Ficou completamente nua. Experimentou a temperatura da
água e deixou-se escorregar para a banheira. Lavou-se devagar. Lídia conhecia o
valor do asseio na sua situação.
Limpa e refrescada, embrulhou-se no roupão de banho e saiu para a
cozinha. Antes de voltar ao quarto acendeu o fogão de gás e pôs uma cafeteira
ao lume para o chá. No
quarto, vestiu um vestido simples mas gracioso, que lhe vincava as formas e a
tornava mais nova, arranjou sumariamente o rosto, contente de si mesma e do
creme que vinha usando. Regressou à cozinha. A água já fervia. Retirou a
cafeteira. Quando abriu a caixa do chá verificou que estava vazia. Fez uma
careta de aborrecimento. Deixou a lata e voltou ao quarto. Ia fazer uma ligação
para a mercearia, chegou a levantar o auscultador, mas ao ouvir alguém falar na
rua abriu a janela. O
nevoeiro levantara-se e o céu estava azul, de
um azul aguado de começo de Primavera. O sol vinha mesmo de muito
longe, tão de longe que a atmosfera estimulava de frescura». In José Saramago, Claraboia, 1953,
Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia
ECaminho/JDACT