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A usura designa uma multiplicidade de práticas, o que dificultará o
estabelecimento de uma fronteira entre o lícito e o ilícito nas operações que
admitem juros. Esta distinção, difícil mas necessária, entre usura e juro, esta
horrível fascinação por um animal multiforme, ninguém melhor as sentiu do que
Ezra Pound no século XX.
O mal é a Usura, neschek a serpente
neschek
cujo
nome é conhecido, a corruptora,
além
da raça e contra a raça a corruptora
Toxos hic mali medium
est
Aqui está o centro do
mal, ígneo inferno sem sossego,
A gangrena
corrompendo todas as coisas, Fafnir o verme,
Sífilis do Estado, de
todos os reinos,
Excrescência do bem
comum,
Fazedora de quistos,
corruptora de todas as coisas,
Escuridão, a
corruptora,
Má gémea da inveja,
Serpente das sete
cabeças, Hidra,
penetrando em todas as coisas.
Mas há também Usura, a usura em si,
denominador comum de um conjunto de práticas financeiras proibidas. A usura é a
arrecadação de juros por um emprestador nas operações que não devem dar lugar
ao juro. Não é portanto a cobrança de qualquer
juro. Usura e juro não são sinónimos, nem usura e lucro: a usura
intervém onde não há produção ou transformação material de bens concretos. Thomas
de Chobham começa a sua exposição sobre a usura com estas considerações: em
todos os outros contratos posso esperar e receber um lucro (lucrum), assim se eu lhe
tivesse dado alguma coisa poderia esperar um contradom (antidonum), isto é, uma réplica ao dom (contra datam) e poderia esperar receber, visto que fui o primeiro a lhe dar. Do mesmo
modo, se eu lhe tivesse dado em empréstimo as minhas vestes ou o meu mobiliário
poderia receber um preço por eles. Por que não aconteceria o mesmo se eu lhe
tivesse dado em empréstimo o meu dinheiro (denarios meos)? Tudo está aí: é o estatuto do dinheiro, na doutrina e na mentalidade
eclesiásticas da Idade Média, que é a base da condenação
da usura. Não me entregarei aqui a um estudo propriamente económico, que
deveria aliás levar em conta a maneira, muito diferente da nossa, pela qual são
percebidas as realidades que hoje isolamos para fazer dela o conteúdo de uma
categoria específica: a económica. O único historiador e teórico moderno da
economia que nos pode ajudar a compreender o funcionamento do económico na
sociedade medieval parece-me ser Karl Polanyi (1886-1964).
Para evitar qualquer
anacronismo, se quisermos tentar analisar o fenómeno medieval da usura numa
perspectiva económica, é preciso reter estas duas observações de Polanyi e dos seus
colaboradores. A primeira, extraída de Malinowski, diz respeito ao domínio do
dom e do contradom:
na categoria das transações,
que supõem um contradom economicamente equivalente ao dom, encontramos um outro
facto desconcertante. Trata-se da categoria que, de acordo com as nossas
concepções, deveria praticamente confundir-se com o comércio. Não é nada disso.
Ocasionalmente, a troca se traduz pelo vaivém de um objecto rigorosamente
idêntico entre os parceiros, o que tira assim da transação toda a finalidade ou
toda significação económica imaginável! O simples facto de um porco voltar ao
seu doador, mesmo por via indirecta, troca de equivalentes, em vez de
orientar-se na direcção da racionalidade económica, demonstra ser uma garantia
contra a intrusão de considerações utilitárias. A única finalidade da troca é
estreitar a rede de relações reforçando os laços de reciprocidade.
Na verdade, a
economia ocidental do século XIII não é a economia dos indígenas das ilhas
Trobriand no início do século XX; mas, se é mais complexa, a noção de reciprocidade domina a teoria das
trocas económicas numa sociedade fundada nas redes de relações cristãs e
feudais». In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006,
ISBN 978-972-695-683-9.
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