sábado, 20 de outubro de 2018

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «Este não gostou do filme, disse Felipe. Não se deve ver o que não se é capaz de aguentar, disse Jorge debaixo da mesa. Nunca gostei de filmes de terror…»

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«(…) ... E ter-se atirado em histeria à porta do apartamento do conserje, terminou Calderón, irritado com a interrupção de Falcón. Levou um certo tempo até conseguir extrair algum sentido das palavras dela e depois chamou o 091. O conserje veio aqui em cima? Não até à chegada do primeiro carro-patrulha, que veio selar a cena do crime. A porta estava aberta? Sim. E a criada... Onde está agora? Está sob o efeito de sedativos, no Hospital de la Virgen de la Macarena. Inspector Ramírez... Diga, inspector-chefe... Todas as conversas entre Falcón e Ramírez começavam assim. Era a maneira de Ramírez lembrar ao inspector-chefe que tinha vindo de Madrid e ficado com o lugar que ele, Ramírez, sempre presumira que iria ser seu. Peça ao subinspector Pérez para ir ao hospital e, assim que a criada... Já sabemos o nome dela? Dolores Oliva. Assim que ela reaja... Ele que lhe pergunte se viu alguma coisa estranha... Bem, sabe o que tem de perguntar. E indague quantas voltas deu à chave para abrir a porta e quais foram precisamente os seus movimentos antes de encontrar o corpo. Ramírez repetiu tudo ao subinspector. Já sabemos do paradeiro da sra. Jiménez e das crianças? Perguntou Falcón. Julgamos que estejam no Hotel Cólon. Na calle Bailén? Perguntou Falcón. Era o hotel de cinco estrelas em que ficavam todos os toreros, apenas a cinquenta metros da sua... Da casa do seu falecido pai... Uma não coincidência. Mandamos um carro lá, disse Calderón. Queria concluir o levantamento do cadáver logo que possível e remover o corpo para o Instituto Anatómico Forense antes de trazermos a sra. Jiménez aqui.
Falcón anuiu. Calderón deixou-os. Os dois peritos da Policia Científica; Felipe, beirando os cinquenta e cinco anos, e Jorge, quase nos trinta entraram, murmurando bom dia. Falcón olhou fixamente para o plugue do televisor caído no chão e decidiu não mencionar o facto. Fotografaram a sala e, entre eles, começaram a reconstituir um cenário. Entretanto, Jorge tirava impressões digitais de Jiménez e Felipe polvilhava o móvel da TV/vídeo e as duas capas de vídeos vazias. Estavam de acordo quanto à posição normal do aparelho e o facto de Jiménez olhar para ele habitualmente sentado numa cadeira reclinável de pele, cuja base giratória, quando deslocada, deixava uma marca circular no chão de madeira. O assassino tinha imobilizado Jiménez, retirado a cadeira de pele, que não se adequava aos seus propósitos, e ido buscar uma das cadeiras de espaldar alto, de modo a poder erguer o corpo com um único movimento de rotação. O assassino amarrou, em seguida, os pulsos de Jiménez aos braços da cadeira, lhe descalçou as meias, enfiou-as na boca e lhe prendeu os tornozelos. Em seguida, manobrou a cadeira, fazendo-a avançar alternadamente sobre as pernas, até ficar na posição ideal.
Os sapatos dele estão aqui debaixo, disse Jorge, apontando para o vão da mesa. Um par de mocassins cor de vinho com berloques franjados. Falcón apontou para uma zona desgastada no soalho em frente da cadeira de pele. Ele gostava de tirar os sapatos e sentar-se diante do televisor a esfregar os pés no chão de madeira. Enquanto via filmes pornográficos, disse Felipe, polvilhando uma das capas de vídeo. Este se chama Cara ou C… E a posição da cadeira? Perguntou Jorge. Para quê mudar tanta mobília de lugar? Javier Falcón avançou para a porta, voltou-se e abriu os braços para os investigadores. Impacto máximo. Um verdadeiro homem do espectáculo, concordou Felipe. Esta capa tem La Familia Jiménez, escrito a caneta de feltro vermelha e há um cassete no aparelho com o mesmo título e a mesma caligrafia. Não parece excessivamente aterrador, disse Falcón e todos olharam para o terror sublinhado a sangue em Raúl Jiménez, antes de retomarem o trabalho.
Este não gostou do filme, disse Felipe. Não se deve ver o que não se é capaz de aguentar, disse Jorge debaixo da mesa. Nunca gostei de filmes de terror, disse Falcón. Eu também não, disse Jorge. Não aguento tanta... Tanta...Tanta o quê? Perguntou Falcón, surpreso por estar interessado. Não sei... Normalidade, aquela portentosa normalidade. Todos nós precisamos de um pouco de medo para nos estimular, disse Falcón, admirando a gravata vermelha que trazia, com o suor a perolar-lhe outra vez a testa. Ouviu-se uma pancada debaixo da mesa, quando a cabeça de Jorge bateu na parte interior do tampo. Mer… Sabem o que é isto? Disse Jorge, recuando para fora do vão da mesa. É um naco da língua de Raúl Jiménez. Silêncio dos três homens. Meta-a num saco, disse Falcón. Não vamos encontrar nenhuma impressão digital, disse Felipe». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT