domingo, 7 de outubro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «Em pungente silêncio, acendeu uma lâmpada de azeite e colocou-a delicadamente sobre o altar, derramando uma pitada de incenso junto a uma vela que se consumia em chamas de eternidade»

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«(…) Feliciano aproveitou para desfiar o coro das lamentações pelo facto de a seita dos cristãos estar a ganhar cada vez mais adeptos, sobretudo depois da conversão e favores dos imperadores. E de estes se tornarem agressivos opositores dos ancestrais cultos que se velavam naquela terra, desde o tempo em que a velha deusa Nábia fora senhora dos antepassados. E igualmente desde que Ísis ali chegara, vinda do oriente, prometendo aos iniciados a felicidade durante a vida e a salvação na que se lhe seguiria. Essa novidade transformara a deusa que nascera no Egipto numa incansável viajante pelo mundo helénico e romano, adaptando-se permanentemente aos novos tempos, fundindo-se com Demeter de Eleusis, ambas vinculadas ao cíclico renascer da natureza. Aquela que fora a primeira companheira de Osíris, agora de Serápis, mas também infatigável peregrina pelos inúmeros portos do Mare Internum, tocando o coração dos atenienses, gauleses, romanos e, finalmente, dos hispânicos da Península Ibérica, tinha agora concorrência de peso, no que tocava às promessas de salvação para além da morte: a de um outro deus oriental anunciado por um judeu crucificado em Aelia Capitolina, a antiga Jerusalém.
Enquanto Flaviano e Arménio esperavam à entrada do templo, maldizendo as condições climatéricas e garantindo a segurança das mulheres que trouxeram até Iria Flavia, Priscila dobrou o umbral da porta, com muito custo, devido ao cansaço da viagem e à indisfarçável debilidade. Mas isso não a impedia de prosseguir de cabeça erguida e pose seráfica, a par do sacerdote, que a protegia da chuva, e já inteirado da razão da imprevista visita. Valéria seguia atrás, transportando o que precisava para o culto. O resto seria ali comprado, pois que também era necessário contribuir para o sustento do sacerdote e do próprio santuário, que os tempos iam difíceis. Chegada ao altar, depois de um prolongado momento de reflexão, Priscila ergueu os braços aos céus e, de pé, murmurou a ladainha que lhe saiu do coração:

Ó Senhora, tu que vês e atendes a quem te invoca com toda a boa-fé,
A fé dos nossos antepassados e dos vindouros,
Dos que no teu colo encontraram a cura para todos os males,
Consolo para todas as tristezas,
E que assim será para todo o sempre!
Acode-me e protege-me nesta hora!
Ó deusa da simplicidade, ó protetora dos mortos,
Ó deusa das crianças de quem todos os começos surgiram,
Ó Senhora dos eventos mágicos e da natureza!
Tu que deste origem ao Céu e à Terra,
Que conheces o órfão e a viúva,
Que providencias justiça aos pobres
E que dás abrigo aos frágeis!
Rainha dos Céus,
Acode-me e protege-me nesta hora!
Mãe dos deuses,
Que resplandeces em mil caras,
Em quem habitam todos os nomes,
Esposa que choras a morte do teu próprio esposo,
Senhora das culturas verdejantes,
Senhora da Casa que dá a Vida,
Doadora da Luz do Céu,
Em ti confio a vida e a saúde daquele que gerei!

Em pungente silêncio, acendeu uma lâmpada de azeite e colocou-a delicadamente sobre o altar, derramando uma pitada de incenso junto a uma vela que se consumia em chamas de eternidade. Deitou uma moeda no poço que se abria sobre o lado esquerdo e voltou ao silêncio das orações. O sacerdote, retirado para um compartimento do santuário, atrás do altar, aproximou-se de Priscila e murmurou-lhe ao ouvido: está tudo pronto!
As duas mulheres seguiram o homem de túnica verde, muito coçada pelo uso, para a dependência de onde saíra. Nos quatro recantos, ardiam velas e queimavam-se as essências orientais apropriadas ao culto. Ali se consumaria a oblação final, a que ninguém mais poderia assistir.
Valéria tirou do saco um robusto galo negro nascido e engordado na villa, com o bico bem amarrado por fios de fiteira. O sacerdote cortou-os, com delicadeza. O bicho cacarejou, aliviado. Mas foi por tempo curto, pois, num único golpe, uma lâmina sacrificial atravessou-lhe o pescoço, dando apenas tempo a alguns rápidos espasmos do corpo sem cabeça que o comandasse. O sangue encheu de vermelho o bacio preparado para a imolação». In Alberto S. Santos, O segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
                                                   
Cortesia de PEditora/JDACT