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Feliciano aproveitou para desfiar o coro das lamentações pelo facto de a seita
dos cristãos estar a ganhar cada vez mais adeptos, sobretudo depois da
conversão e favores dos imperadores. E de estes se tornarem agressivos
opositores dos ancestrais cultos que se velavam naquela terra, desde o tempo em
que a velha deusa Nábia fora senhora dos antepassados. E igualmente desde que
Ísis ali chegara, vinda do oriente, prometendo aos iniciados a felicidade
durante a vida e a salvação na que se lhe seguiria. Essa novidade transformara
a deusa que nascera no Egipto numa incansável viajante pelo mundo helénico e romano,
adaptando-se permanentemente aos novos tempos, fundindo-se com Demeter de Eleusis,
ambas vinculadas ao cíclico renascer da natureza. Aquela que fora a primeira companheira
de Osíris, agora de Serápis, mas também infatigável peregrina pelos inúmeros portos
do Mare Internum,
tocando o coração dos atenienses, gauleses, romanos e, finalmente, dos
hispânicos da Península Ibérica, tinha agora concorrência de peso, no que
tocava às promessas de salvação para além da morte: a de um outro deus oriental
anunciado por um judeu crucificado em Aelia Capitolina, a antiga Jerusalém.
Enquanto Flaviano e Arménio
esperavam à entrada do templo, maldizendo as condições climatéricas e
garantindo a segurança das mulheres que trouxeram até Iria Flavia, Priscila dobrou
o umbral da porta, com muito custo, devido ao cansaço da viagem e à
indisfarçável debilidade. Mas isso não a impedia de prosseguir de cabeça
erguida e pose seráfica, a par do sacerdote, que a protegia da chuva, e já
inteirado da razão da imprevista visita. Valéria seguia atrás, transportando o
que precisava para o culto. O resto seria ali comprado, pois que também era
necessário contribuir para o sustento do sacerdote e do próprio santuário, que
os tempos iam difíceis. Chegada ao altar, depois de um prolongado momento de
reflexão, Priscila ergueu os braços aos céus e, de pé, murmurou a ladainha que
lhe saiu do coração:
Ó Senhora,
tu que vês e atendes a quem te invoca com toda a boa-fé,
A fé
dos nossos antepassados e dos vindouros,
Dos
que no teu colo encontraram a cura para todos os males,
Consolo
para todas as tristezas,
E que
assim será para todo o sempre!
Acode-me
e protege-me nesta hora!
Ó
deusa da simplicidade, ó protetora dos mortos,
Ó
deusa das crianças de quem todos os começos surgiram,
Ó
Senhora dos eventos mágicos e da natureza!
Tu que
deste origem ao Céu e à Terra,
Que
conheces o órfão e a viúva,
Que
providencias justiça aos pobres
E que
dás abrigo aos frágeis!
Rainha
dos Céus,
Acode-me
e protege-me nesta hora!
Mãe
dos deuses,
Que
resplandeces em mil caras,
Em
quem habitam todos os nomes,
Esposa
que choras a morte do teu próprio esposo,
Senhora
das culturas verdejantes,
Senhora
da Casa que dá a Vida,
Doadora
da Luz do Céu,
Em ti
confio a vida e a saúde daquele que gerei!
Em pungente silêncio, acendeu uma
lâmpada de azeite e colocou-a delicadamente sobre o altar, derramando uma
pitada de incenso junto a uma vela que se consumia em chamas de eternidade.
Deitou uma moeda no poço que se abria sobre o lado esquerdo e voltou ao silêncio
das orações. O sacerdote, retirado para um compartimento do santuário, atrás do
altar, aproximou-se de Priscila e murmurou-lhe ao ouvido: está tudo pronto!
As duas mulheres seguiram o homem
de túnica verde, muito coçada pelo uso, para a dependência de onde saíra. Nos
quatro recantos, ardiam velas e queimavam-se as essências orientais apropriadas
ao culto. Ali se consumaria a oblação final, a que ninguém mais poderia assistir.
Valéria tirou do saco um robusto
galo negro nascido e engordado na villa,
com o bico bem amarrado por fios de fiteira. O sacerdote cortou-os, com
delicadeza. O bicho cacarejou, aliviado. Mas foi por tempo curto, pois, num único
golpe, uma lâmina sacrificial atravessou-lhe o pescoço, dando apenas tempo a
alguns rápidos espasmos do corpo sem cabeça que o comandasse. O sangue encheu
de vermelho o bacio preparado para a imolação». In Alberto S. Santos, O segredo
de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT