domingo, 7 de outubro de 2018

O Erotismo. Georges Bataille. «O tempo assinalado pela história para o homem de Neandertal é o paleolítico médio. Desde o paleolítico inferior que, segundo parece, o precedeu de centenas de milhares de anos»


jdact e wikipedia

O interdito ligado à morte
O objeto fundamental dos interditos é a violência
«(…) O que impediu perceber na sua simplicidade essa articulação decisiva da vida humana foi o capricho que reinou na promulgação dos interditos, que frequentemente lhes deu uma insignificância superficial. A significação dos interditos, se nós os encararmos na sua totalidade e, em particular, se levarmos em consideração aqueles que não deixamos de observar religiosamente, é, entretanto, redutível a um elemento simples. Eu o enuncio sem poder mostrá-lo de imediato (somente à medida que eu avançar na minha reflexão, que eu quis sistemática, é que o seu fundamento aparecerá): o que o mundo do trabalho exclui através dos interditos é a violência; no campo em que eu estou desenvolvendo a minha pesquisa, trata-se ao mesmo tempo da reprodução sexual e da morte. É só mais adiante que poderei estabelecer a unidade profunda desses contrários aparentes que são o nascimento e a morte. Entretanto, desde o começo, a sua conexão exterior é revelada no universo sádico, que se propõe à meditação de quem reflectir sobre o erotismo. Sade, o que ele quis dizer geralmente horroriza mesmo aqueles que fingem admirá-lo e não reconheceram por si mesmos este facto angustiante: que o movimento do amor, levado ao extremo, é um movimento de morte. Essa relação não deveria parecer paradoxal: o excesso que dá origem à reprodução e o que é a morte só podem ser compreendidos um com a ajuda do outro. Mas parece, desde o princípio, que os dois interditos iniciais se referem, o primeiro, à morte, e o outro, à função sexual.

Os dados pré-históricos do interdito ligado à morte
Não matarás. Não pecarás contra a castidade... São estes os dois mandamentos fundamentais que a Bíblia prega e que, essencialmente, não deixamos de observar. O primeiro desses interditos é a consequência da atitude humana para com os mortos. Refiro-me à fase mais remota de nossa espécie, onde nosso destino foi decidido. Antes mesmo de o homem ter o aspecto que tem hoje, o homem de Neandertal, ao qual os estudiosos da pré-história dão o nome de Homo faber, já fabricava instrumentos de pedra variados, frequentemente bem elaborados, com os quais ele trabalhava a pedra, ou a madeira. Esta espécie de homem, vivendo cem mil anos antes de nós, embora já se parecesse connosco, parecia-se ainda com o antropóide. Se bem que ele tivesse como nós a posição erecta, as suas pernas eram ainda um pouco dobradas; quando caminhava, apoiava-se antes na planta que na parte exterior dos pés. Não tinha como nós o pescoço destacado do corpo (embora certos homens tenham conservado algo de seu aspecto simiesco). Ele tinha a testa baixa e a arcada superciliar proeminente. Não conhecemos senão os ossos desse homem rudimentar; não podemos saber exactamente o aspecto do seu rosto; e nem mesmo se a sua expressão já era humana. Sabemos somente que ele trabalhou e se afastou da violência.
Se olharmos a sua vida globalmente, vemos que ele permaneceu no domínio da violência. (Nós mesmos não a abandonamos inteiramente.) Mas ele escapou em parte ao seu poder. Ele trabalhava. Temos o testemunho de sua habilidade técnica deixada nos variados e numerosos instrumentos de pedra. Esta habilidade já era tão grande que, mesmo se tivesse podido retomar e melhorar mecanicamente a concepção inicial, teria chegado igualmente a resultados não só regulares, mas também aperfeiçoados com o tempo. Seus instrumentos não são, aliás, as únicas provas de uma oposição à violência. As sepulturas deixadas pelo homem de Neandertal são igualmente um testemunho disso. O que esse homem reconheceu de monstruoso e de surpreendente, e mesmo do maravilhoso, com o trabalho foi a morte.
O tempo assinalado pela história para o homem de Neandertal é o paleolítico médio. Desde o paleolítico inferior que, segundo parece, o precedeu de centenas de milhares de anos, existiam seres humanos bastante parecidos que, como os neandertalenses, deixaram testemunhos do seu trabalho: as ossadas que nos chegaram desses homens nos levam a pensar que a morte já começava a inquietá-los, visto que os crânios pelo menos, por seu lado, já constituíam objecto de atenção. Mas a inumação, tal como a humanidade actual, no seu todo, continua a praticá-la religiosamente, aparece pelo fim do paleolítico médio: pouco tempo antes do desaparecimento do homem de Neandertal e da chegada de um homem exactamente parecido connosco, ao qual os estudiosos (reservando ao homem mais antigo o nome de Homo faber) dão o nome de Homo sapiens». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT