O interdito ligado à morte
O objeto fundamental dos interditos é a violência
«(…) O que impediu perceber na
sua simplicidade essa articulação decisiva da vida humana foi o capricho que
reinou na promulgação dos interditos, que frequentemente lhes deu uma
insignificância superficial. A significação dos interditos, se nós os
encararmos na sua totalidade e, em particular, se levarmos em consideração
aqueles que não deixamos de observar religiosamente, é, entretanto, redutível a
um elemento simples. Eu o enuncio sem poder mostrá-lo de imediato (somente à
medida que eu avançar na minha reflexão, que eu quis sistemática, é que o seu
fundamento aparecerá): o que o mundo do trabalho exclui através dos interditos
é a violência; no campo em que eu estou desenvolvendo a minha pesquisa,
trata-se ao mesmo tempo da reprodução sexual e da morte. É só mais adiante que
poderei estabelecer a unidade profunda desses contrários aparentes que são o
nascimento e a morte. Entretanto, desde o começo, a sua conexão exterior é
revelada no universo sádico,
que se propõe à meditação de quem reflectir sobre o erotismo. Sade, o que
ele quis dizer geralmente horroriza mesmo aqueles que fingem admirá-lo e não
reconheceram por si mesmos este facto angustiante: que o movimento do amor,
levado ao extremo, é um movimento de morte. Essa relação não deveria parecer paradoxal:
o excesso que dá origem à reprodução e o que é a morte só podem ser compreendidos
um com a ajuda do outro. Mas parece, desde o princípio, que os dois interditos
iniciais se referem, o primeiro, à morte, e o outro, à função sexual.
Os dados pré-históricos do interdito ligado à morte
Não matarás. Não pecarás contra a
castidade... São estes os dois mandamentos fundamentais que a Bíblia prega e
que, essencialmente, não deixamos de observar. O primeiro desses interditos é a
consequência da atitude humana para com os mortos. Refiro-me à fase mais remota
de nossa espécie, onde nosso destino foi decidido. Antes mesmo de o homem ter o
aspecto que tem hoje, o homem de
Neandertal, ao qual os estudiosos da pré-história dão o nome de Homo faber, já fabricava
instrumentos de pedra variados, frequentemente bem elaborados, com os quais ele
trabalhava a pedra, ou a madeira. Esta espécie de homem, vivendo cem mil anos
antes de nós, embora já se parecesse connosco, parecia-se ainda com o
antropóide. Se bem que ele tivesse como nós a posição erecta, as suas pernas
eram ainda um pouco dobradas; quando caminhava, apoiava-se antes na planta que
na parte exterior dos pés. Não tinha como nós o pescoço destacado do corpo
(embora certos homens tenham conservado algo de seu aspecto simiesco). Ele
tinha a testa baixa e a arcada superciliar proeminente. Não conhecemos senão os
ossos desse homem rudimentar; não podemos saber exactamente o aspecto do seu
rosto; e nem mesmo se a sua expressão já era humana. Sabemos somente que ele trabalhou e se afastou da
violência.
Se olharmos a sua vida
globalmente, vemos que ele permaneceu no domínio da violência. (Nós mesmos não
a abandonamos inteiramente.) Mas ele escapou em parte ao seu poder. Ele
trabalhava. Temos o testemunho de sua habilidade técnica deixada nos variados e
numerosos instrumentos de pedra. Esta habilidade já era tão grande que, mesmo se
tivesse podido retomar e melhorar mecanicamente a concepção inicial, teria chegado
igualmente a resultados não só regulares, mas também aperfeiçoados com o tempo.
Seus instrumentos não são, aliás, as únicas provas de uma oposição à violência.
As sepulturas deixadas
pelo homem de Neandertal
são igualmente um
testemunho disso. O que esse homem reconheceu de monstruoso e de surpreendente,
e mesmo do maravilhoso, com o trabalho foi a morte.
O
tempo assinalado pela história para o homem
de Neandertal é o
paleolítico médio. Desde o paleolítico inferior que, segundo parece, o
precedeu de centenas de milhares de anos, existiam seres humanos bastante
parecidos que, como os neandertalenses, deixaram testemunhos do seu trabalho:
as ossadas que nos chegaram desses homens nos levam a pensar que a morte já
começava a inquietá-los, visto que os crânios pelo menos, por seu lado, já
constituíam objecto de atenção. Mas a inumação, tal como a humanidade actual, no
seu todo, continua a praticá-la religiosamente,
aparece pelo fim do paleolítico médio: pouco tempo antes do
desaparecimento do homem de Neandertal e da chegada de um homem exactamente
parecido connosco, ao qual os estudiosos (reservando ao homem mais antigo o
nome de Homo faber) dão
o nome de Homo sapiens».
In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa,
L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.
Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT