sábado, 6 de outubro de 2018

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «… quando se apercebeu que chegava um carro bem aparelhado, onde reluziam as faleras, os peitorais dos animais, os passa-rédeas de fino recorte, argolas de bronze por onde passavam as oito rédeas do carro»

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«(…) E, como sabes, não viajaste com o senhor para Bracara Augusta, como de costume… Esta é mesmo a tua última oportunidade! Flaviano voltou à sala de estar, onde recebera as ordens de Priscila. A jovem mulher, apesar do parto recente e da debilidade patente no corpo frágil e nos olhos tristes, soergueu a voz, para perguntar em modos suaves, como era o seu timbre: está tudo preparado?! Tudo haverá de ficar preparado, Priscila…, desculpe, senhora! Acabo de garantir que o carro estará pronto à hora certa e que teremos condutor, respondeu o dedicado curador, cobrindo a mulher com um olhar protector. Sim, porque Arménio é o único que temos, de momento… O rapaz está recomposto? Flaviano tossicou para aclarar a voz, mas aproveitou para ajeitar o pensamento à resposta a dar a Priscila. Ele não voltará a cometer outra imprudência! Aquela serviu-lhe de lição! Ai estes cristãos! Tão ciosos da sua ética e não são capazes de perdoar! Perdeu o pai…, justificou Flaviano. É compreensível… Mas, no caso, nem de perdão se poderá falar! O meu esposo não cometeu qualquer crime, ninguém imaginaria que um homem tão experimentado pudesse ser tão imprevidente… É verdade…, consentiu, enfadado com o tema. E o bebé, como está hoje?, perguntou, alçando o olho em busca do rosto da criança dormida na alcofa.
Quando um novo dia foi fecundado por Hélio, ainda que escondido atrás das intermináveis nuvens grávidas, as rodas de um imponente carro puxado por quatro cavalos estralejaram no piso da Via XIX. Protegida pela cobertura, Priscila entreviu os fios de luz de alguns archotes que se abrigavam por detrás das janelas da mansio de Aseconia, a estalagem à face da estrada que, nas imediações da sua villa, dava guarida aos viajantes. O Império Romano dera ao ocidente uma grande bênção: a rede de vias como nunca houvera conhecido. Fora desenvolvida por necessidades militares e de provimento da posta, e que logo veio a ser aproveitada para o tráfego comercial e social. Mas não eram as bênçãos do império que motivavam as reflexões de Priscila, Valéria e Flaviano. Dentro do casulo saltitante, os três preocupavam-se em evitar que a chuva entrasse nos precários, embora luxuosos, aposentos e em chegar, rapidamente, a bom porto.
A meio de uma manhã pluviosa, como tantas que a precederam, o santuário de Ísis era um lugar praticamente deserto, no cimo de um monte. À medida que se aproximava, ganhava forma um imponente edifício granítico suspenso numa colunata. Priscila conhecia-o de cor. Apreciava o lintel com a figura da deusa e o espaço evocativo da natividade do divino Hórus, com as paredes decoradas com desenhos alusivos às fases desse nascimento junto a várias deidades. Mas, olhando-o de longe, suspenso sobre a vegetação luxuriante e banhada de chuva, pressentiu a magia do lugar, como se houvesse sido ali colocado para lhe tocar a alma. E essa energia irradiava, intensa, daquele espaço sagrado, de intermediação com o divino, despertando o ser espiritual que a habitava.
Quando chegou às portas do templo, apenas se entrevia, sentado, um velho sacerdote calvo, que vivia nas imediações e lhe provia os ofícios e a manutenção. Protegido das fúrias dos céus, soergueu os olhos, em jeito inquisitivo, à chegada dos peregrinos. Fora acordado de um sono profundo pelo tropel dos cavalos governados por Arménio. Recostava-se na cadeira, dentro do edifício principal. Por cima da padieira da porta bailava, ao sabor do vento, uma placa que anunciava: Vendem-se lamparinas, filtros para as libações, filactérios, ex-votos e estatuetas de Ísis. Porém, quando se apercebeu que chegava um carro bem aparelhado, onde reluziam as faleras, os peitorais dos animais, os passa-rédeas de fino recorte, argolas de bronze por onde passavam as oito rédeas do carro, levantou-se como que impelido por uma mola. O sacerdote nunca vira aquela carruagem, uma verdadeira obra-prima, com um elevado nível de perfeição, em que o artista conseguira combinar uma decoração complexa com um vibrante Mercúrio, deus protector dos viajantes. E tinha razão para não a ter visto: fora a prenda que Lucídio Danígico Tácito adquirira para a esposa quando soube da gravidez do primeiro herdeiro. Ela e a criança precisariam de cómodos para viajarem, à altura do prestígio social do dono. Senhora, a esta hora e neste dia…?! O velho sacerdote não escondia a surpresa por ver Priscila, muito embora a soubesse muito devota e adivinhasse, assim que o enxergou, que aquele carro só aos Danígicos poderia pertencer. É verdade, Feliciano! Os tempos não andam tão favoráveis como esperava… Preciso da ajuda da Senhora dos Céus! Este é o lugar certo! Muito embora o século não esteja lá muito propício aos nossos cultos…» In Alberto S. Santos, O segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT