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E, como sabes, não viajaste com o senhor para Bracara Augusta, como de costume…
Esta é mesmo a tua última oportunidade! Flaviano voltou à sala de estar, onde
recebera as ordens de Priscila. A jovem mulher, apesar do parto recente e da
debilidade patente no corpo frágil e nos olhos tristes, soergueu a voz, para
perguntar em modos suaves, como era o seu timbre: está tudo preparado?! Tudo
haverá de ficar preparado, Priscila…, desculpe, senhora! Acabo de garantir que
o carro estará pronto à hora certa e que teremos condutor, respondeu o dedicado
curador, cobrindo a mulher com um olhar protector. Sim, porque Arménio é o único
que temos, de momento… O rapaz está recomposto? Flaviano tossicou para aclarar
a voz, mas aproveitou para ajeitar o pensamento à resposta a dar a Priscila. Ele
não voltará a cometer outra imprudência! Aquela serviu-lhe de lição! Ai estes
cristãos! Tão ciosos da sua ética e não são capazes de perdoar! Perdeu o pai…,
justificou Flaviano. É compreensível… Mas, no caso, nem de perdão se poderá
falar! O meu esposo não cometeu qualquer crime, ninguém imaginaria que um homem
tão experimentado pudesse ser tão imprevidente… É verdade…, consentiu, enfadado
com o tema. E o bebé, como está hoje?, perguntou, alçando o olho em busca do
rosto da criança dormida na alcofa.
Quando
um novo dia foi fecundado por Hélio, ainda que escondido atrás das intermináveis
nuvens grávidas, as rodas de um imponente carro puxado por quatro cavalos
estralejaram no piso da Via XIX. Protegida pela cobertura, Priscila entreviu os
fios de luz de alguns archotes que se abrigavam por detrás das janelas da mansio de Aseconia, a
estalagem à face da estrada que, nas imediações da sua villa, dava guarida aos viajantes. O Império Romano dera
ao ocidente uma grande bênção: a rede de vias como nunca houvera conhecido.
Fora desenvolvida por necessidades militares e de provimento da posta, e que
logo veio a ser aproveitada para o tráfego comercial e social. Mas não eram as
bênçãos do império que motivavam as reflexões de Priscila, Valéria e Flaviano.
Dentro do casulo saltitante, os três preocupavam-se em evitar que a chuva
entrasse nos precários, embora luxuosos, aposentos e em chegar, rapidamente, a
bom porto.
A meio de uma manhã pluviosa,
como tantas que a precederam, o santuário de Ísis era um lugar praticamente
deserto, no cimo de um monte. À medida que se aproximava, ganhava forma um
imponente edifício granítico suspenso numa colunata. Priscila conhecia-o de
cor. Apreciava o lintel com a figura da deusa e o espaço evocativo da
natividade do divino Hórus, com as paredes decoradas com desenhos alusivos às
fases desse nascimento junto a várias deidades. Mas, olhando-o de longe,
suspenso sobre a vegetação luxuriante e banhada de chuva, pressentiu a magia do
lugar, como se houvesse sido ali colocado para lhe tocar a alma. E essa energia
irradiava, intensa, daquele espaço sagrado, de intermediação com o divino, despertando
o ser espiritual que a habitava.
Quando chegou às portas do
templo, apenas se entrevia, sentado, um velho sacerdote calvo, que vivia nas
imediações e lhe provia os ofícios e a manutenção. Protegido das fúrias dos céus,
soergueu os olhos, em jeito inquisitivo, à chegada dos peregrinos. Fora
acordado de um sono profundo pelo tropel dos cavalos governados por Arménio.
Recostava-se na cadeira, dentro do edifício principal. Por cima da padieira da
porta bailava, ao sabor do vento, uma placa que anunciava: Vendem-se lamparinas, filtros para as libações,
filactérios, ex-votos e estatuetas de Ísis. Porém, quando se
apercebeu que chegava um carro bem aparelhado, onde reluziam as faleras, os
peitorais dos animais, os passa-rédeas de fino recorte, argolas de bronze por
onde passavam as oito rédeas do carro, levantou-se como que impelido por uma
mola. O sacerdote nunca vira aquela carruagem, uma verdadeira obra-prima, com
um elevado nível de perfeição, em que o artista conseguira combinar uma decoração
complexa com um vibrante Mercúrio, deus protector dos viajantes. E tinha razão
para não a ter visto: fora a prenda que Lucídio Danígico Tácito adquirira para
a esposa quando soube da gravidez do primeiro herdeiro. Ela e a criança
precisariam de cómodos para viajarem, à altura do prestígio social do dono. Senhora,
a esta hora e neste dia…?! O velho sacerdote não escondia a surpresa por ver
Priscila, muito embora a soubesse muito devota e adivinhasse, assim que o
enxergou, que aquele carro só aos Danígicos poderia pertencer. É verdade,
Feliciano! Os tempos não andam tão favoráveis como esperava… Preciso da ajuda
da Senhora dos Céus! Este é o lugar certo! Muito embora o século não esteja lá
muito propício aos nossos cultos…» In Alberto S. Santos, O segredo de
Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT