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«(…) Outra tarefa fundamental gira à volta da Inquisição (maldita) e seus processos ante-kafkianos,
iluminando o caso de Manuel Fernandes de Vila Real, quando pede colaboração
activa a Luísa Dacosta (um frete, diz ele), em termos de bibliografia inexistente
em Paris. Ela providencia, ainda, jornais, revistas e tabaco Português Suave,
ou envia fotografias da família. Entre mil desculpas, recebe um lembrete, que
estendemos ao leitor: tome nota, a minha Amiga é a pessoa a quem mais escrevo. Donde,
a importância desta correspondência para melhor conhecer Saraiva e parte do
nosso mundo até 20 de Dezembro de 1965.
A pouco e pouco, vamos percebendo que, entre Estética e
Política, sobressai uma Moral, demonstrado que fica o desnivelamento entre o
progresso técnico e o progresso moral. Não é só o engodo das civilizações
orientais; Saraiva tem à mão prenúncios de Maio de 68, a que assiste, retomando
em Maio e a Crise da Civilização Burguesa (1970) o debate aqui esboçado sobre a
Burguesia e o Progresso. Em ambos os textos, conclui que, a existir
transformação do mundo, será obra de uma mudança espiritual. As 60 missivas (incluindo a que vai em
anexo) foram cedidas por Luísa Dacosta, passando de Leonor Curado Neves ao
actual editor literário, que as transcreveu e anotou. Os sublinhados surgem em
itálico. Procedemos a desdobramentos, completámos palavras, houve rara
actualização ortográfíca (Ant. - António; c. - cada; gr. - grande; Hist. -
História; mãi - mãe; m/ - minha; mt - muito; p. - para; pq - porque; quási -
quase; s/ - sua; tb - também; etc.). Conclui-se de algumas ausências (postais,
sobretudo), perdidas ou interceptadas. Também perdida ficou alguma, ou ficaram
algumas, de 1966, talvez nas mãos daquela nossa malograda Amiga, porquanto
refere uma carta enviada a Luísa Dacosta a 8 de Dezembro de 1966, em António
José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência. O tríptico epistolar
fechará com a correspondência de António José Saraiva dirigida a Teresa Rita
Lopes.
Luísa Dacosta, nome civil, Maria Luísa Saraiva Pinto dos Santos,
nasceu em Vila Real (16 de Fevereiro de 1927), cujo tempo, longe, evocou em 2004:
Houve um tempo, em que uma montanha azul, de um azul amassado
com violetas, fechava o horizonte do quintal, mesmo quando empoleirada na
japoneira, seu mastro de aventuras, sonhava entre o perfume das rosas e dos
lilases. Longe, na infância... Na minha primeira infância o mundo não existia,
fora dos mapas ou do globo terrestre. Não havia telefone, nem rádio, nem televisão.
Só os grandes liam o jornal e lhe recortavam o Pim Pam Pum, às
quintas-feiras. Assim, às vezes no meio do sonho ou das leituras, que a
prendiam, quando estirada no ramo da japoneira, pensava no que a esperaria para
lá do Marão, quando saísse do confinamento, aconchegante, da cidadezinha, onde
todos se conheciam e ninguém era anónimo, nem mesmo os pobres. [...] O que haveria
para lá do Marão? Segundo o primo Jorge, que já tinha ido ao Porto, pouca
coisa: mais casas e mais ruas. Só?! Estranhara. Não podia acreditar. O primo
Jorge, companheiro de brincadeiras, devia estar enganado e olhara
apressadamente. Mesmo no Porto, sabia pelo pai, havia ópera e concertos. Na altura
o seu compositor preferido era Grieg, porque um primo tocava ao piano a canção
de Solveig e o que a tentava eram outros horizontes mais vastos e uma
liberdade, que poria fim àquela estreiteza, ritual e repetitiva, de todos os
anos. Natal, Janeiras, Reis, matança do porco, S. Brás, onde as namoradas
compravam ganchas, que imitavam o báculo do santo, para o seu rapaz.
Seguia-se o Carnaval e a festa do colégio. Depois da mi-carême, vinha a
Páscoa, o folar e o enterro, anual, do Senhor. O santo António, dia da cidade ,
trazia a feira anual e maior, com barracas, circo e fogo-de-artifício farto e,
logo depois, a dos pucarinhos de Bisalhães, pelo S. Pedro. Com o Verão havia
música no coreto do Jardim da Carreira e faziam-se preparativos para as férias
na Póvoa de Varzim. […]
In António José Saraiva e Luísa Dacosta, Correspondência, edição de
Ernesto Rodrigues, Gradiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-616-455-3.
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